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Francisco Luiz Scagliusi

Irresponsabilidade urbana

Como está, Plano Diretor trará consequências nefastas à organização territorial de São Paulo

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Francisco Luiz Scagliusi

Doutor em arquitetura e urbanismo (USP), é consultor em legislação ambiental e urbana e ex-professor de arquitetura e urbanismo

O que pretende a proposta apresentada pela Associação Brasileira de Incorporadores (Abrainc) —e aceita pelo relator do projeto de revisão do Plano Diretor de São Paulo, vereador Rodrigo Goulart (PSD)— com a ampliação na área das Zonas de Estruturação da Transformação Urbana (ZEUs) ao redor dos eixos de transporte?

O ponto crucial é a alteração dos atuais 600 m de raio, que passariam para 1.000 m, perfazendo um círculo de 2.000 m de diâmetro —o que representa um aumento de 2 milhões de m2— ou de 180% na superfície para cada ZEU!

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Verticalização em eixos de transporte é tema da revisão do Plano Diretor de São Paulo - Eduardo Knapp - 17.jan.2022/ Folhapress - Folhapress

A proposta dos incorporadores altera radicalmente o que institui o Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade no capítulo que trata "Da Estruturação e Ordenação Territorial". A norma estabelece que o adensamento demográfico e urbano deve se concentrar ao longo da rede estrutural de transporte coletivo, os "Eixos de Estruturação da Transformação Urbana". Na prática, são faixas de até 300 m para cada lado dos corredores de ônibus e círculos de até 600 m de raio ao redor de estações de metrô.

Ocorre que a proposta de expansão das ZEUs em toda a capital irá se sobrepor às zonas mistas (ZM) e zonas predominantemente residenciais (ZPR), sendo que esta última deveria ser excluída da abrangência das ZEUs, a exemplo das zonas exclusivamente residenciais (ZER). Como consequência, todo o zoneamento da cidade será alterado. Vale dizer que zonas que funcionalmente operam uma transição nas densidades urbanas desaparecerão.

A proposta abole com o conceito de eixo de adensamento e sua relação com os meios de transporte de massa. Um exemplo dessa propositura, no caso da ZEU da estação do metrô da Vila Madalena, é o avanço da verticalização —sem limite de altura— sobre os bairros Vila Beatriz, Vila Ida, Vila Ipojuca, Vila Anglo, Jardim Vera Cruz, Sumarezinho, Pompeia e Perdizes, tradicionalmente residenciais e com gabarito de altura predominante até dois pavimentos.

Não é pouco afirmar que as consequências serão nefastas diante da desorganização territorial promovida pelas alterações pretendidas na lei.

É importante recordar que, com a aprovação do PDE em 2014, bairros consolidados por toda a cidade, com casario predominantemente residencial, foram destruídos. Deu-se então início a um processo de verticalização selvagem, sem os estudos previstos no próprio plano sobre a saturação do sistema viário; o aumento da poluição ambiental e sonora; o agravamento da drenagem local; as características ambientais e geológico-geotécnicas; e a preservação de bens de valor histórico, cultural e paisagístico.

Da noite para o dia pipocaram torres de 30 a 40 pavimentos onde haviam conjuntos de residências construídas há mais de meio século. Não se trata de uma preservação nostálgica do ambiente construído, mas de pensar uma verticalização que garanta, além dos estudos citados, a memória afetiva do lugar —ou os aspectos imateriais marcados pelo uso coletivo.

As ZEUs não alcançaram —por imposição do mercado— os objetivos inicialmente previstos naquela norma: produção de habitação para quem prescinde do automóvel e, portanto, sem vagas; promoção de usos não residenciais; ampliação da oferta de serviços e equipamentos; incentivo ao uso de outros modais de transporte, como bicicleta.

Para piorar, o mercado se apropriou dos programas de subsídios governamentais para a produção de unidades que deveriam ser destinadas para habitação social, preterindo a enorme demanda existente.

O tecido urbano apresenta uma complexidade que não pode ser tratada de forma irresponsável, alterando as condições de uso e ocupação do solo sem estudos prévios aprofundados.

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