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Luciana Temer

A bem-vinda retomada da educação sexual

Medida ocorre quando se registra aumento de violências contra crianças

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Luciana Temer

Advogada, professora da Faculdade de Direito da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta

Neste último mês foram divulgados os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Vimos um aumento nos registros de todas as violências contra crianças, em especial da violência sexual. Em 2022 foram registradas 40.659 denúncias de estupro de menores de 13 anos (61,4% de todos os casos). Nem precisa ser bom de conta para ver que são mais de quatro crianças estupradas por hora no país. A maioria são meninas (86%), tem entre 10 e 13 anos e, 56% delas, são negras. A casa da vítima é o lugar mais perigoso (72,2% dos registros), o que é fácil de entender quando se verifica que o crime é praticado majoritariamente por familiares (71,5% dos casos).

Tive a oportunidade de escrever o artigo do anuário que analisa esses dados. A reflexão que fiz, e que faço aqui, é que se o aumento de 4.924 registros policiais verificado de 2021 para 2022 representa um avanço real dos casos ou um crescimento das denúncias. Sou otimista; então, aposto na segunda hipótese. Essa violência sempre existiu, está mais do que na hora de começar a aparecer.

Assédio violência doméstica abuso sexual estupro
Ilustração de Catarina Pignato sobre violência sexual - Catarina Pignato - Catarina Pignato

Coincidência ou não, uma semana depois da divulgação dos dados do anuário o governo federal anunciou a retomada da educação sexual nas escolas por meio do Programa Saúde na Escola (PSE). Para quem não sabe, o programa existe desde 2007 e busca levar ações de saúde aos alunos da rede pública de ensino. Entre as ações previstas no programa estão coisas bem objetivas, como avaliação auditiva, oftalmológica e controle de calendário vacinal, mas também mais complexas, como prevenção do uso de drogas, redução do consumo de álcool e promoção da saúde sexual e reprodutiva.

Infelizmente, toda polêmica absurda sobre "discussão de gênero" (que até hoje ninguém conseguiu explicar o que é...) e fake news como a "mamadeira de piroca" fizeram com que muitos pais se colocassem contrários a qualquer abordagem sobre educação sexual nas escolas. "Promoção de saúde sexual e reprodutiva" virou sinônimo de "ensinar crianças a fazer sexo".

Aula de educação sexual em escola pública na zona leste de São Paulo - Zanone Fraissat - 14.jun.22/Folhapress

Afinal, do que falamos quando falamos de educação sexual? Comecei o artigo com os dados que comprovam que a violência sexual contra crianças é intrafamiliar e, por isso, difícil de ser revelada. O que o dado não diz é que essa violência nem sempre é percebida como violenta aos olhos da criança —portanto, se ela não sabe que aquilo não deve acontecer, pode acreditar que é uma brincadeira ou um carinho (não se esqueçam de que se trata de uma pessoa próxima, que ela conhece). Assim, se a escola aborda o assunto, e há maneira sutis de fazer isso, pode ajudar a interromper violências em curso ou mesmo evitar que aconteçam. Acreditamos verdadeiramente que a informação protege. Da mesma forma, a maioria dos adolescentes iniciam a vida sexual sem que nenhum adulto tenha tido uma conversa franca sobre sexualidade —e não me refiro aqui à prevenção de doenças ou gravidez, mas a prazer, consentimento e respeito por si e pelo outro. Ao discutir abertamente questões como o consumo de pornografia, por exemplo, damos a chance de os adolescentes criarem uma nova relação com a sua sexualidade, mais livre, responsável e saudável.

Seja com crianças ou adolescentes, a conversa sobre prevenção à violência sexual e a sexualidade saudável deve ser um processo cuidadoso e permanente. Essa é a razão pela qual o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina que o tema da prevenção às violências deve ser tratado no currículo de forma transversal e em todas as etapas da vida escolar.

Portanto, a notícia da retomada da parte do Programa de Saúde na Escola que aborda os direitos sexuais e reprodutivos é, sem sombra de dúvida, uma boa notícia a ser comemorada. Mas é apenas o começo de um longo caminho a ser percorrido, que começa por tirar a violência sexual infantil da invisibilidade, seguida da compreensão de que a escola é o lugar por excelência para falar dela, e da construção de currículo e capacitação de professores para que a prevenção aconteça de verdade.

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