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Luiz Guilherme Piva

A economia e o saco de batatas

Otimização não é obtida por 'ordem espontânea'

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Luiz Guilherme Piva

Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhadores e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

O debate sobre o papel do Estado e do mercado na economia é antigo, mas sempre atual. Abriga posições extremas, que vão das que pregam a total virtude pública dos comportamentos privados, com a ausência de qualquer ação estatal, até as que advogam o Estado como demiurgo, sem o qual a economia seria algo como a guerra de todos contra todos hobbesiana. Além de muitas outras linhagens entre elas.

É comum utilizarem-se analogias e metáforas para todas as concepções. Há o "projeto" e o "processo"; o "suave comércio" e o "Estado indutor"; a "ordem espontânea" e a "ação criadora"; a "mão invisível" e o "Estado como nação"; e até os "ladrilhadores" e os "semeadores" —termos extraídos, com outro conteúdo, de Sérgio Buarque de Holanda.

Batatas à venda em mercado
Batatas à venda em mercado - Rushi Shah na Unsplash - Rushi Shah na Unsplash

Porém, algumas expressões surpreendem. Saco de batatas é uma. Ela foi trazida pela professora Deirdre McCloskey em artigo nesta Folha ("Michael Polanyi e a ordem espontânea", 27/7), retomando a imagem feita pelo químico Michael Polanyi para defender a "ordem espontânea" e não o "planejamento" como melhor forma de a economia se organizar. Michael é irmão do sociólogo e economista heterodoxo Karl Polanyi, cuja leitura a professora desaconselha: "Leia Polanyi, não Karl".

Fora desse uso, a analogia do "saco de batatas" só é conhecida, nos meios populares, por ser um repto machista ("você é um homem ou um saco de batatas?") e, nos meios acadêmicos, pela comparação feita no 18 Brumário, em que Karl Marx, ao identificar que falta consciência e interesse comuns aos camponeses franceses, afirma que eles não formam uma classe, assim como "batatas em um saco" são apenas "um saco de batatas".

Voltando. O químico Polanyi e a economista McCloskey defendem que a disposição de batatas em um saco é otimizada jogando-as lá dentro e sacudindo o recipiente, e que nenhuma ação racional, nem a de todos os "matemáticos aplicados", será capaz de melhorar essa maximização "espontânea". A professora cita Michael: "A maneira como as batatas se acomodam para encher um saco tem analogias óbvias com a corrida competitiva dos indivíduos".

A metáfora da espontaneidade é falha. Seja porque há alguém jogando as batatas e elas estão num lugar circunscrito e há alguém as sacudindo, seja porque, para ficar na matemática, a chamada Conjectura de Kepler vai no sentido oposto ao tratar da maximização do preenchimento de espaços por objetos como as frutas e os legumes.

O professor Marcelo Viana, também nesta Folha, mostrou em dois artigos ("400 anos em busca da melhor maneira de empacotar laranjas", 11.dez.19; e "Empacotamento de esferas resolvido em dimensões altas", 18.jul.22) que o matemático e astrônomo Johannes Kepler concluiu, quatro séculos antes de Michael Polanyi, que, se esferas como balas de canhão e frutas, e também formas assemelhadas (como batatas, digamos), forem empilhadas ou ensacadas aleatoriamente, a densidade máxima obtida será de 64% do espaço, mas que "é possível fazer melhor, por exemplo, colocando as bolas em uma disposição hexagonal, como feirantes exibem frutas em suas barracas: nesse caso a densidade é cerca de 74%". Certamente isso não é possível de modo espontâneo.

Essa otimização da Conjectura de Kepler é reconhecida como verdadeira pelos estudiosos desde então e por feirantes (também de batatas) desde sempre, e foi demonstrada matematicamente por Thomas Hales, em 2017 —bons seis anos antes do artigo de McCloskey.

Leiam Kepler. E os Karls.

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