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Tarifa zero pode ser o novo Bolsa Família

Famílias mais pobres têm se deslocado mais, e dinheiro economizado vai para comércio e serviços

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A crise do transporte público se agrava no Brasil. O que já estava ruim tornou-se insustentável. Há décadas, a quantidade de pessoas nos trens, ônibus e barcas diminui. Para compensar a perda de receita, linhas são cortadas e as tarifas aumentam, em círculos viciosos que afastam mais passageiros. Com a pandemia, a crise escalou alguns degraus.

Os números dizem por si. São Paulo perdeu 1 bilhão de viagens em ônibus na última década —33% do total; já Belo Horizonte, 42% em relação a 2011. O mesmo ocorre em outras capitais. Nesse contexto, cresce o financiamento público. O número de cidades que subsidia o transporte mais do que dobrou a partir da pandemia, chegando a 59 em 2022. Apesar disso, as tarifas continuam altas, e os serviços seguem encolhendo.

Mas há uma exceção. Nas cidades que adotam a tarifa zero o número de passageiros se multiplica, explicitando uma demanda reprimida pelo custo da tarifa. Em Caucaia (CE), a mais populosa do Brasil com a política (cerca de 355 mil habitantes), o número de viagens cresceu em quatro vezes, de acordo com dados da administração municipal. A prefeitura estima que a circulação de veículos privados diminuiu 40% e que a renda das famílias mais pobres aumentou de 15% a 36%.

Gestores de outras cidades apontam resultados parecidos. As famílias mais pobres têm se deslocado mais —e o dinheiro economizado vai para o comércio e serviços. Cresce o acesso a praças, parques, escolas e postos de saúde. Há registros de redução de internações, por maior acesso à saúde primária.

Há dez anos, havia 17 municípios com tarifa zero universal no Brasil. Hoje, são 80. Cada vez mais cidades médias adotam, e algumas capitais têm avaliado implementar a política. Cada município encontra uma forma de financiamento e gestão. São experiências relevantes, mas a ausência de estruturação em nível federal impede que a política seja democratizada, com regulação e recursos suficientes.

O estudo "Vale-transporte: visão geral e passos possíveis para seu financiamento público", lançado no Congresso Nacional durante o terceiro seminário "Transporte como Direito e Caminhos para a Tarifa Zero", em julho deste ano, apresenta uma proposta para subsidiar o transporte. Propõe uma fonte de financiamento que não disputa os recursos existentes e tampouco cria novos tributos. A solução passa pela mudança na forma de contribuição das empresas. O potencial de aumento de arrecadação é significativo.

Hoje, apenas uma parte dos empregos formais no Brasil contribui com o vale-transporte. Isso porque a política é opcional para os empregados e deixa de ser vantajosa para salários mais altos. A conta fica nas costas dos trabalhadores mais pobres, que contribuem com até 6% dos seus salários, e dos trabalhadores informais, que pagam a tarifa em seus deslocamentos. Trata-se de um exemplo de política tributária regressiva (paga mais quem pode menos) e de subsídio cruzado (os mais pobres financiam um sistema que beneficia toda a sociedade).

A proposta recém-lançada substitui o vale-transporte por uma contribuição das empresas, a ser realizada para todos os funcionários. Micro e pequenas empresas poderiam ficar isentas. Ainda assim, com o valor de R$ 220 por empregado por mês, seria possível arrecadar R$ 100 bilhões por ano, o suficiente para financiar todo o sistema de transporte no país.

A proposta é similar ao Versement Transport, política que já existe na França há 50 anos. O transporte público francês não é de qualidade por acaso: o país estruturou uma fonte de recursos robusta e estável, que garante a melhoria contínua dos serviços.

No Brasil, a crise do modelo vigente abre a oportunidade de implementação de uma política transformadora. Ninguém está satisfeito com o sistema atual —usuários, prefeituras, empresas de ônibus. A tarifa zero já é realidade e está crescendo por gravidade no país.

O governo federal pode liderar esse processo, levando adiante uma política efetiva de combate à pobreza, à exclusão e à segregação, que aumenta a renda dos mais pobres e contribui para a descarbonização da economia e para evitar o colapso climático. O impacto pode ser tão significativo quanto foi o Bolsa Família e programas sociais dos governos anteriores.

Clarisse Cunha Linke
Diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil)

Daniel Caribé,
Doutor em arquitetura e urbanismo, é coordenador do Observatório da Mobilidade de Salvador

Daniel Santini
Coordenador da Fundação Rosa Luxemburgo no Brasil

Letícia Birchal
Doutoranda em ciência política (UFMG), integra o movimento Tarifa Zero BH

Roberto Andrés
Urbanista, professor da UFMG e diretor da Rede Nossas Cidades

TENDÊNCIAS / DEBATES
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