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Marcia Castro e João Abreu

A crise da obesidade: novas promessas e riscos

Otimismo com drogas recém-criadas é legítimo, mas exige cautela

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Marcia Castro

Professora de demografia, é chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard e colunista da Folha

João Abreu

Diretor-executivo da ImpulsoGov

Novos medicamentos para diabetes e redução de peso, com efeitos incomparáveis com o que existia até aqui, farão com que 2023 entre para a história como o ano que mudou o debate público global sobre obesidade. As consequências são, ao mesmo tempo, promissoras e perigosas.

Quem lidera este movimento, até o momento, é a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk, fabricante da semaglutida (vendida como Ozempic e Wegovy). O PIB da Dinamarca cresceu 1,9% no último trimestre —90% do avanço atribuído à Novo Nordisk, que recentemente se tornou a empresa mais valiosa da Europa.

O fenômeno tem origem clara: a demanda global por esses medicamentos explodiu, superando a capacidade de fornecimento da empresa. No Brasil, o Ozempic, para diabetes, deve ter disponibilidade intermitente até o final do ano e o Wegovy, para obesidade, só chegará em 2024.

Existe motivo para otimismo. A obesidade é um dos principais fatores de risco para doenças cardiovasculares, responsáveis por 178 mil mortes evitáveis todos os anos no Brasil. Segundo a Novo Nordisk, houve redução de 20% nos eventos cardíacos adversos graves com uso do medicamento, incluindo AVC e morte. Isso representaria 35 mil vidas salvas por ano, um potencial significativo para o país que viu a obesidade mórbida crescer 30% nos últimos quatro anos.

Mas também existem motivos para cautela e preocupação. Mais estudos independentes são imprescindíveis para confirmar os resultados —até aqui quase tudo que sabemos foi financiado pela própria indústria. Pior: sabe-se que os medicamentos atuam reduzindo o apetite, mas os mecanismos exatos não são totalmente conhecidos.

Deve-se notar também os custos elevados —o Ozempic custa a partir de R$ 700 por mês no Brasil, e o Wegovy deve passar de R$ 2.000. No nosso país, a obesidade afeta 16% mais quem recebe até meio salário mínimo do que quem ganha mais de cinco. Em Nova York já se sabe que quem mais está consumindo esses medicamentos são os moradores de bairros mais ricos —onde a prevalência de pessoas acima do peso é menor e a expectativa de vida é maior. O mesmo deve ocorrer por aqui —e quem mais precisa pode ficar sem acesso.

Como o remédio é de administração contínua e não requer receita, há grande risco de consumo exagerado, inclusive incentivado pela indústria. O acompanhamento médico será fundamental; o que pode ser um desafio. Levantamento da ONG ImpulsoGov mostra que 8 de cada 10 municípios não consegue acompanhar nem metade da sua população com diabetes, condição intimamente ligada à obesidade.

Em grande parte, a origem da crise de saúde pública da obesidade é social e comportamental. O ritmo alucinado da vida urbana, o alto consumo de alimentos ultraprocessados, o acesso limitado a espaços de recreação com segurança e a baixa prevalência de atividade física são fatores determinantes e demandam políticas públicas de mitigação.

A futura ação dos governos será fundamental para assegurar a utilização segura, não abusiva e democrática desses medicamentos. Mas não podemos nos esquecer dessa faceta distópica da sociedade: criamos alimentos ultraprocessados cada vez mais baratos que induzem o sobreconsumo e a obesidade —e, agora, medicamentos para ficarmos satisfeitos com menos comida. Não atacamos a raiz do problema.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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