O conceito de preconceito de marca, ou fenotípico, apresentado pelo sociólogo Oracy Nogueira no 31° Congresso de Americanistas, em 1954, mantém-se central no debate sobre o racismo no Brasil.
Essa forma de preconceito, típica de nosso país, baseia-se muito na aparência dos indivíduos e pouco em laços familiares ou características genéticas que não estejam refletidas em "marca". É situacional e insidiosa. Surge de microagressões diárias e na forma de discursos e ações abertamente racistas, escondendo-se na maior parte do tempo sob as narrativas da "democracia racial" e de que "somos todos iguais".
"Um crime perfeito", afirma Kabengele Munanga, pois é sempre culpa "do outro".
Em contraste com os EUA, não tivemos uma ampla legislação segregacionista pós-escravidão, como as leis de Jim Crow, ou grandes grupos racistas organizados, como a Ku Klux Klan. Nem por isso nosso racismo é menos grave: de forma disfarçada, pretere, em vez de segregar abertamente, os indivíduos com fenótipo negro em todos os âmbitos da vida (profissão, educação, saúde, justiça, relações pessoais e afetivas, segurança).
O conceito de preconceito de marca também se opõe à ideia de que o racismo no Brasil é equiparável a um preconceito de classe —os negros seriam discriminados por serem mais pobres, em razão de uma herança mal resolvida do modo de produção escravista, a qual seria naturalmente superada com o avanço do capitalismo liberal.
Oracy já identificava a relação complexa entre cultura e economia. Padrões estéticos, estereótipos, piadas e ditos populares não apenas se alimentam dos problemas estruturais que recaem com maior peso sobre a população negra como os reforçam ao contribuir para discriminações com impactos concretos graves, como no caso do perfilamento racial por parte da polícia.
A obra de Oracy é frequentemente utilizada na análise de questões contemporâneas, como a política de cotas para acesso às universidades e a cargos públicos, renovada recentemente pelo Congresso.
O racismo no Brasil, como já afirmava o autor, é fenotípico. É inevitável, portanto, que o critério principal de seleção da política reparatória de cotas sejam os traços de aparência. A seleção, sem embargo, deve procurar apreender o processo de formação das identidades raciais em toda a sua complexidade.
Nesse sentido, cabe recordar que pesquisa do IBGE de 2022 mostrou crescimento da população autodeclarada negra em 32,4% em 10 anos, provavelmente em razão de processo de valorização da negritude e da cultura negra. Pardos correspondem a 45,3% da população e pretos a 10,6%. Há debate sobre a noção de que todos os pardos seriam negros e sobre a legitimidade de conceitos como "mestiço". Em um país miscigenado, em que as definições de raça têm grau relevante de plasticidade, é preciso harmonizar o combate às fraudes nas cotas com cuidado para evitar que se excluam e mesmo se execrem e "cancelem" indivíduos que estejam em situação dúbia.
Na prática, para a definição do direito dos candidatos em vestibulares e concursos públicos às vagas para negros, começa-se perguntando ao candidato como ele se vê (autodeclaração). São necessárias, então, bancas de análise dessas declarações para identificar fraudes (bancas de "heterodeclaração"). Embora não haja obrigação legal para a criação dessas bancas, elas têm sido implementadas em processos seletivos diversos.
Tendo em vista o caráter insidioso do racismo e a complexidade do processo contemporâneo de formação de identidades raciais, parece importante que as bancas de heteroidentificação tenham composição numerosa e representativa (racial, de gênero, regional) e anulem autodeclarações apenas com base em votação por maioria qualificada, ou, ao menos no caso de bancas menores, por unanimidade.
Devem, além disso, de modo a assegurar uma análise justa dos casos limítrofes, estabelecer um processo de escuta com os candidatos —em sua maioria jovens inseridos em um contexto cultural hipercomplexo, em que estímulos para o reconhecimento de sua negritude coexistem com o risco de acusação de "afroconveniência".
As opiniões expressas no artigo não necessariamente refletem os posicionamentos do Ministério das Relações Exteriores.
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