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Filipe Nasser

A banalização do uso da força nas relações internacionais

Estado de coisas é gestado por um ambiente desestimulante à concórdia

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Filipe Nasser

Diplomata de carreira

Em 1928, o ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Aristide Briand, uniu forças ao secretário de Estado dos EUA, Frank Kellogg, para pactuar o acordo que imortalizaria ambos. Trata-se do Pacto de Paris sobre a "Renúncia da Guerra como Instrumento de Política Nacional" —ou "Pacto Multilateral contra a Guerra"—, ao qual aderiram 13 outros países. Autoexplicativo, jamais teve força de lei perante o direito internacional. Sua importância histórica reside na formação de uma consciência universal sobre a preferência pela solução pacífica das controvérsias. Foi atropelado pelos acontecimentos subsequentes.

O uso da força militar nas relações internacionais não é inteiramente proscrito pela Carta da ONU. Está restrito, no entanto, a situações específicas: o direito à legitima defesa e o emprego de forças multinacionais de imposição da paz (as operações de manutenção da paz poderiam ser consideradas outra modalidade). As demais formas de uso da força pelos Estados configuram violação do direito internacional, tanto em seu aspecto de método (força militar), como em relação às consequências que produzem (violação da soberania e da integridade territorial de terceiros Estados). Sob a égide da ONU, o recurso à violência como método de solução das controvérsias foi relegado à excepcionalidade.

Infelizmente, o uso da força bruta nas relações internacionais tem sido banalizado nos nossos tempos.

Homem caminha em frente a casa destruída em Zhytomyr, no norte da Ucrânia - Fadel Senna - 23.mar.22/AFP - AFP

Esse estado de coisas não tomou forma do dia para a noite, tendo sido gestado por um ambiente crescentemente desestimulante à concórdia e à cooperação. Fenômenos entrelaçados, como o aumento da competição entre as potências, a debacle da chamada Primavera Árabe, a própria crise do multilateralismo e o recrudescimento do extremismo político, ajudam a explicar o duro teste a que a ordem do pós-guerra tem sido submetida. É, no entanto, difícil distinguir entre as causas e as consequências desse azedamento observado nas relações internacionais na última década.

O conflito na Ucrânia, a crise em Gaza, as tensões no Cáucaso, os atritos entre Belgrado e Pristina e a guerra civil no Iêmen são só alguns dos exemplos que clamam a vida de civis, povoam o noticiário e aumentam os atritos entre os atores no contexto de transição para uma ordem multipolar. Naturalmente, o aumento das abrasões entre potências regionais e globais não é inédito e jamais chegou a desaparecer da paisagem internacional: o que resta cada vez mais evidente é que se tem recorrido à força militar com mais frequência, diretamente ou por procuração.

Seria precipitado amarrar todos esses episódios sob a mesma tenda histórica: cada qual observa suas próprias lógicas. Seria, entretanto, míope desassociar esse conjunto de irrupções localizadas das forças históricas mais amplas.

Preciso em seu diagnóstico, o discurso diplomático do Brasil evita atribuir a causa da crise no sistema de segurança coletiva à incapacidade dos mecanismos da governança global, preferindo imputar ao enferrujamento das estruturas decisórias a responsabilidade pela ineficácia das respostas às crises.

Restam poucas dúvidas de que a obsolescência do Conselho de Segurança da ONU —cuja presidência rotativa coube justamente ao Brasil em outubro— não favorece a remoção dos constrangimentos ao recurso à força militar na ótica de atores estatais e não estatais.

Perdido na memória, o pacto Briand-Kellog permanece em vigor. Já a ONU, apesar desse enferrujamento diagnosticado, ainda oferece a mais bem acabada moldura para encaminhar pacífica e diplomaticamente as controvérsias internacionais. Só se pode esperar que essa rediviva arbitrariedade no uso da força nas relações internacionais seja devolvida à caixa de Pandora de onde parece ter saído. E que a comunidade internacional aproveite a ocasião histórica para se comprometer com uma reforma abrangente das estruturas decisórias que restabeleça sua capacidade de reagir de forma resoluta e eficaz em favor da paz, especialmente em dias trágicos como os nossos.

* As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores

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