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Celso Vilardi

Crônica de um crime anunciado

Fingimos que o combatemos, e as facções avançam de forma assustadora

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Celso Vilardi

Advogado e professor de direito da FGV-SP

Grandes cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, estão dominadas pelo crime organizado, que cresce de forma exponencial. Várias são as causas, todas solenemente ignoradas pelas autoridades. Quando surge uma crise, fala-se em aumento de penas e criação de novos tipos penais. É uma ladainha antiga, que não funciona.

O primeiro grande desafio é justamente o oposto do que sempre se propõe. Nossos presídios funcionam como escolas do crime. Não regeneram ninguém. A explicação: criminosos menos perigosos entram em pânico quando são presos; temem pela própria integridade física e até pela vida. A tática do crime organizado é simples: são acolhidos e protegidos, mas tornam-se devedores. Facilmente são recrutados e passam a integrar a base das organizações.

Carcaça de ônibus queimado próximo à estação Notre Dame, na zona oeste do Rio de Janeiro; cerca de 35 ônibus foram incendiados na zona oeste do Rio por conta da morte de um dos líderes da milícia que atua na cidade - Eduardo Anizelli/Folhapress - Folhapress

O Brasil precisa debater penas alternativas para criminosos menores, com uso de tornozeleiras eletrônicas, e reservar a prisão para criminosos perigosos. Sem isso, a fábrica de criminosos jamais vai parar.

Outro ponto relegado é a investigação das polícias. Não há aplicação de recursos nas corregedorias. Não há inteligência para combater a criminalidade policial. As prisões são pontuais e quase sempre fortuitas.

O problema é agravado pela remuneração das polícias, que é precária e insuficiente, dado o risco e a importância das funções. Terreno fértil para a corrupção.

Ao contrário do que se propaga, temos vários crimes vigentes; o que não há é aplicação da lei. A cada crise, repetem-se notícias sobre lavagem de dinheiro com uso do sistema bancário e imobiliário. As penas já são altíssimas. Os processos é que são inexpressivos. Os estados não têm equipes de investigação organizadas e não há ligação efetiva com a Polícia Federal. Seria necessária uma inteligência nacional, integrando as polícias Civil e Federal no combate à lavagem.

O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) ajuda, mas é um órgão modesto para um país com dimensões continentais. Da mesma forma, a prevenção à lavagem é uma verdadeira falácia. Bilhões de reais foram investidos em compliance nas empresas. Mas, após a edição da lei 9.613/1998, quem atua na área criminal, como eu, constata que o compliance tem contribuição insignificante. São milhões de comunicações por ano, mas a maioria jamais será lida ou analisada. O sistema não funciona. Na maioria dos casos, os suspeitos só são parados quando já estão sendo investigados pelo Judiciário. Ora, nesse momento, deveria ser óbvio, o sujeito não representa mais perigo, porque está sob controle das autoridades.

Para coroar, nem no governo Jair Bolsonaro nem no governo Lula verifica-se atuação plena da Polícia Federal. Antes, havia certa obsessão por desvios na área da saúde; agora, há um cerco a atos antidemocráticos. Não se nega a importância de investigar e punir esses atos, mas a guerra é, ou deveria ser, contra o crime organizado.

Assim, fingimos que estamos combatendo o crime organizado. Vamos endurecendo a lei e aumentando o rol de crimes hediondos, enquanto as organizações criminosas crescem sem parar. Está tarde, mas ainda é possível implementar medidas sérias. Se nada for feito, estaremos perto de um estado calamitoso.

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