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José Eduardo Faria

Mais crises à vista

PEC que limita decisões de ministros põe STF diante de uma encruzilhada

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José Eduardo Faria

Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP

Qual é o alcance da autoridade jurisdicional de uma corte suprema para rever a constitucionalidade de atos dos outros Poderes e declarar inconstitucional uma proposta de emenda constitucional aprovada adequadamente no plano formal —mas discutível no plano substantivo— pelo Legislativo?

A relação entre democracia e jurisdição constitucional se esgota na tomada de uma decisão judicial? Questões como essas surgiram quando o Senado aprovou uma PEC limitando as decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal, sob a justificativa de evitar que a Justiça estaria invadindo as áreas de atuação do Executivo e do Legislativo.

Em resposta a elas, dois fatos não podem ser desprezados. Como, pela Constituição, o STF detém o poder derivado concedido pelo poder constituinte originário para controlar a constitucionalidade das leis, essa prerrogativa sempre implica risco de crise institucional. Além disso, conscientes dos absurdos da ditadura militar, os constituintes incluíram na Constituição cláusulas pétreas em matéria de direitos e estrutura de poder. Com isso, a Constituição transferiu temas do campo da política para o campo do direito, com o objetivo de evitar que novas configurações do Legislativo resultantes de maiorias parlamentares episódicas gerassem caos jurídico no país.

Assim, como nem mesmo PECs aprovadas adequadamente no plano formal pelo Legislativo podem restringir esse direito e essa estrutura de poder, segundo a Carta, não restou ao Executivo e ao Legislativo outra saída a não ser apelar para a judicialização no âmbito do STF. Ou seja: à tentativa de fazer com que a corte, devidamente demandada por ações de controle de constitucionalidade, passasse a interpretar a Carta conforme as agendas dos dirigentes dos dois Poderes.

Só entre 1988 e 2008, foram propostas na corte 4.000 ações de inconstitucionalidade. Como muitas não prosperaram, surgiu então a ideia de ativismo judicial, invocado por quem jamais aceitou que o STF fosse uma trava para os demais Poderes. Também foi aí que começaram as pressões sobre o STF, resultando na PEC recém-aprovada pelo Senado que limita as decisões monocráticas de seus ministros.

Com isso, o STF está diante de uma encruzilhada. Se ceder às pressões, algumas das quais estão vindo sob a forma de um convite para um diálogo entre os Poderes, seus ministros perderão a independência, que está na base de sua credibilidade. Se recusar esse convite, o STF estará sujeito a novas ameaças do Legislativo. Por isso, se a PEC for aprovada pela Câmara e sua constitucionalidade for contestada no STF, seus ministros ficarão numa posição delicada.

Se não a derrubarem, se desmoralizarão. Se afirmarem que a PEC é inconstitucional, estarão expostos a riscos. Um deles pode ser a tentativa das bancadas fisiológica, religiosa e ruralista de estimular multidões evangélicas e bolsonaristas a tomarem as ruas ou procurarem segmentos das Forças Armadas aguçando-as a atuarem como "poder moderador".

Pode parecer exagero, mas não sou fatalista. Sou apenas um pessimista da razão que leva em conta três pontos e uma triste lembrança.

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Flávio Dino em coletiva de imprensa após reunião com Barroso que definiu a data de sua posse para fevereiro - Gabriela Biló/Folhapress

Os pontos são: (i) a consciência de que a autoridade de uma corte suprema para declarar inconstitucional uma PEC sempre gera tensão num sistema de freios e contrapesos; (ii) a consciência de que, em seus julgamentos, os ministros do STF seguem não só o direito positivo mas também seus preconceitos e preferências; (iii) a consciência de que uma Constituição não é algo sagrado, mas uma afirmação moral derivada de juízos políticos a respeito de inspirações históricas, ideias, anseios e práticas.

Quanto à lembrança, quem assistiu às afrontas ao STF nos anos 1960 sabe como uma crise constitucional começa, mas não como termina.

Adaptando ao Brasil —que sempre esteve sujeito a situações excepcionais— o que disse certa vez Norberto Bobbio, só o pessimismo da razão pode despertar quem não se dá conta de que, numa crise entre Poderes, o "sono da razão" pode resultar em monstruosidades institucionais.

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