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Carolina Massad

O gradual esvaziamento do Carf

Governo tenta transformar órgão de justiça fiscal em mero arrecadador

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Carolina Massad

Sócia do Massad Advogados

O retorno do voto de qualidade pró-fisco no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais foi uma das principais pautas do ano de 2023. Contudo, muitas vezes os holofotes do debate público não lançam luz sobre aquilo que de fato é temerário: o gradual esvaziamento do Carf.

O Carf é um tribunal administrativo paritário, cujas turmas são competentes para julgamento do contencioso fiscal federal em segunda e terceira instância. Enquanto se discutia a aprovação do retorno do voto de minerva atribuído ao presidente das turmas do Carf —que é composto por três seções, cada uma delas com competência para julgar matérias/tributos específicos, e por quatro câmaras, que compreendem até duas turmas ordinárias e cinco turmas extraordinárias— foram instituídas as Turmas Recursais da Delegacia de Julgamento, integradas exclusivamente por auditores fiscais para julgar, em segunda e última instância, as controvérsias de até 60 salários mínimos.

Fachada externa do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) - André Corrêa/Senado Federal - André Corrêa/Senado Federal

Assim, as Delegacias de Julgamento, que se debruçavam sob processos fiscais apenas em primeira instância, passam a julgar tais controvérsias, também, em segunda e última instância. Esse dispositivo sutil, que restringe, de portaria em portaria, o acesso ao Carf, limita o direito de contribuintes ao pleno exercício do contraditório e à ampla defesa na esfera administrativa, aumenta gradativamente a competência das turmas compostas apenas por representantes do fisco e empurra causas tributárias, nas quais a análise especializada é indispensável, para o Judiciário.

Na mesma linha é o novo regimento interno do Carf, em vigor desde o dia 5 de janeiro. Entre os aspectos mais preocupantes, que demonstram um esvaziamento do órgão e acenam para uma possível extinção, está o aumento do valor de alçada para julgamento de recursos voluntários pelas turmas ordinárias em sessões síncronas, ou seja, que possibilitam a participação dos contribuintes em tempo real para acompanhamento, sustentação oral e esclarecimentos de fato.

O novo teto estipulado para apreciação de processos nas turmas extraordinárias saltou para, "preferencialmente", até 2.000 salários mínimos, podendo ser ainda maior. Com isso, as turmas ordinárias, caracterizadas pela senioridade de seus agentes e pelas sustentações orais síncronas, são esvaziadas, e questões complexas ficam a cargo de julgadores com menor tempo de experiência.

As regras ainda preveem a possibilidade de sessões assíncronas, que inviabilizam, em um grave desrespeito à ampla defesa, o acompanhamento simultâneo e esclarecimentos de fato durante o julgamento. A mudança também estabelece que as sessões síncronas serão voltadas a casos com valores superiores a um patamar ainda a ser definido. Apesar de o regimento tratar da possibilidade de determinada pauta passar de uma sessão assíncrona para uma síncrona, os critérios são vagos e subjetivos.

Em quase 20 anos de atuação no Carf, sou testemunha da enorme contribuição do órgão à sociedade. Mesmo com a aplicação do voto de qualidade pró-fisco, que até 2020 esteve vigente sem interrupção, a grande maioria dos conselheiros, sejam representantes dos contribuintes ou do fisco, vem exercendo suas funções de forma séria, técnica e comprometida.

Ao diminuir gradativamente o funcionamento regular do Carf, o regimento, que correu sem consulta pública, parece deslegitimar o conselho, criando barreiras a um valioso direito do contribuinte: ter suas questões tributárias apreciadas por julgadores técnicos e com vasta competência em operações contábeis e negociais, que asseguram uma aplicação mais adequada e coerente da Justiça fiscal.

Nesse cenário, é triste ver a tentativa deliberada do governo Federal de transformar o Carf, que deveria ser essencialmente provedor de justiça fiscal, em um órgão meramente arrecadador. Parece que sob esse manto se esconde uma estratégia ainda mais perigosa: a extinção do órgão paritário, em um prejuízo imensurável à sociedade. A polêmica em torno do voto de qualidade ofuscou esse risco, que deveria ocupar o centro dos debates.

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