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Víctor Gabriel Rodríguez

Os paradoxos da descriminalização das drogas pelo STF

Somente ao Poder Legislativo é permitido mudar de opinião ordinariamente

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Víctor Gabriel Rodríguez

Professor livre-docente de direito penal da USP, pesquisa corrupção e é autor de “Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado” (ed. Forense)

O julgamento da descriminalização do porte de drogas é mais uma prova de que o nosso sistema democrático não acolhe a pretensão confessa do Supremo Tribunal Federal (STF) em cumprir uma agenda política.

Quando a corte, para além de seu poder-dever de pronunciar-se sobre a constitucionalidade de uma norma, deseja confeccionar sua própria política antidrogas, surgem consequências paradoxais, que recairão sobre a população mais vulnerável.

Cultivo legalizado de Cannabis no Uruguai - AFP


Vamos nos fixar em duas: (I) eventual responsabilidade do Estado-juiz frente aos já condenados e (II) um novo enquadramento penal do consumo de drogas, resultando em penas gravíssimas para o atual usuário.
O poder do STF, como guardião da Carta, é declarar a constitucionalidade ou não de uma norma. No caso, cuida-se do artigo 28 da atual lei 11.343/2006, que penaliza, mesmo sem possibilidade de prisão, o porte de drogas. Caso declare a inconstitucionalidade, a Suprema Corte, pelo que se delineia, estará a afirmar que a incriminação confronta o direito à vida privada do cidadão-usuário.

Ao não ter havido qualquer modificação relevante sobre o tema, na Constituição ou no mundo real, o pronunciamento reconheceria que a incriminação do porte, por qualquer lei, já era proscrita desde a entrada em vigor da Carta Magna. Como consequência, (I) todos aqueles que foram condenados como usuários se questionarão por que a corte tardou mais de 35 anos para proteger sua liberdade, ou, pior, o que fazer com as tantas vezes que o próprio STF negou habeas corpus aos que cometeram o ato que a Constituição obrigava a que jamais fosse delito.

Ainda que se possa produzir todo um discurso teórico para circundar o problema, o caminho reto é claro: somente ao Poder Legislativo é permitido mudar de opinião ordinariamente, ou seja, estabelecer políticas de entorpecentes harmônicas a suas novas inclinações ideológicas. Na divisão de poderes, o problema enunciado se resolve facilmente pela chamada retroatividade benéfica, prevista na Carta, pois a norma que deixa de considerar um ato como criminoso aplica-se a todos os delitos passados. Mas isso é, pelo artigo 5º, XL, da CF, e artigo 2º do CPB, prerrogativa da lei, jamais de um acórdão.

Problema análogo sobrevive, com outros matizes, (II) na lógica interna da lei de drogas. No caso concreto, nenhum dos magistrados apontou a âncora do sistema: ainda que contraintuitiva, a previsão penal da figura do usuário é elemento restritor de incriminação. À sua ausência, aquele que compra drogas é partícipe da engrenagem do narcotráfico.

Em outras palavras, o consumidor de entorpecentes apenas não responde ao crime de financiamento ou custeio ao tráfico porque a lei hoje ressalva que, no caso específico de uso pessoal, nenhuma prisão lhe pode ser dada. Retire-se da lei o artigo e não demorará para que alguma autoridade incrimine o usuário pelo tal artigo 36, com reclusão de oito a 20 anos. E, daí, talvez demore algumas outras décadas para que o STF se manifeste contra uma assertiva econômica difícil de descompor: a de ser o usuário quem custeia o comércio de entorpecentes.

Sem poder reescrever toda a lei de drogas, a declaração de inconstitucionalidade cria seus paradoxos, apenas para sedimentar mais um indício de que a Constituição repele atuais pretensões legislativas do Judiciário.

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