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Daniel Wei Liang Wang

Contracepção é um direito, mas nem sempre sua oferta é um dever

Isso não exime a instituição do dever de acolher, informar e encaminhar a paciente

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Daniel Wei Liang Wang

Professor de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP)

É possível chegar a conclusões falsas partindo de premissas corretas. Esse é o caso de muitos argumentos que defendem que um hospital privado não pode vetar a realização de procedimento para a inserção de dispositivo intrauterino (DIU) com base nos valores religiosos da instituição.

Esses argumentos partem da premissa correta de que há o direito a medidas anticoncepcionais e que isso é um componente do direito à saúde e à autonomia reprodutiva da mulher. O DIU, em particular, está elencado nas listas de medicamentos e procedimentos do SUS e em diretrizes e políticas públicas sobre direitos reprodutivos. Para quem tem plano de saúde, o direito de acesso a essa intervenção está garantido dado que o DIU consta no rol obrigatório da ANS.

Dispositivo intrauterino (DIU), um dos vários métodos contraceptivos ofertados pelo SUS - Getty Images - Getty Images

Porém, não basta estabelecer que há um direito. É preciso determinar quem tem o dever de satisfazer esse direito. Está claro que tanto o SUS quanto as operadoras de planos de saúde estão obrigadas a garantir o acesso ao DIU por meio do custeio do procedimento e da disponibilização de uma rede de provedores capacitados para sua realização. Haveria uma violação do direito de uma paciente que não conseguisse acessar o serviço pelo SUS ou seu plano. Contudo, da obrigação de sistemas de saúde ofertarem o serviço não decorre necessariamente o dever de todo hospital privado de realizá-lo.

A ausência desse dever legal para os hospitais privados não impede que se reflita sobre se essa obrigação deveria existir. Diante de um conflito entre dois direitos fundamentais —liberdade religiosa e o acesso a um serviço de saúde—, a regra da proporcionalidade exige que se promova um direito restringindo o outro na menor medida possível. No caso, obrigar o hospital a implantar o DIU seria forçá-lo a agir de forma contrária a um preceito que a instituição e seus proprietários consideram central de sua fé. Isso parece ser desproporcionalmente restritivo frente ao ganho para pacientes de terem uma opção a mais dentre as inúmeras instituições e profissionais dispostos a realizar esse procedimento.

Não ter a obrigação de realizar um procedimento não exime a instituição do dever de acolher, informar e encaminhar a paciente para receber o atendimento de sua escolha. Ademais, pode haver situações em que a recusa de hospital ou profissional cria empecilho para o exercício de direitos reprodutivos. Na Itália, por exemplo, o aborto é legal para gestações de até 90 dias, mas a difundida objeção de profissionais a realizá-lo dificulta o acesso. A liberdade do hospital acaba quando sua conduta impede ou cria obstáculo custoso para a liberdade reprodutiva. Esse (felizmente) não parece ser o caso do DIU na região central de São Paulo.

Paradoxalmente, em uma sociedade onde a religião tem força política, respeitar esse tipo de objeção pode ser estrategicamente crucial para se avançar direitos reprodutivos, como a descriminalização mais ampla do aborto. É mais fácil persuadir alguém a permitir que outros façam algo do qual discorde profundamente se souber que, salvo circunstâncias excepcionais, ninguém e nenhuma instituição será obrigado a fazê-lo.

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