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Debora Diniz

Hospitais podem negar procedimentos contraceptivos em razão de valores religiosos? NÃO

Cabe à paciente, não a instituições, definir o método de sua preferência

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Debora Diniz

Professora de direito da UnB (Universidade de Brasília), é pesquisadora da área de direitos reprodutivos e do Instituto de Altos Estudos em Berlim

No Brasil, as ações de planejamento familiar são oferecidas por serviços públicos e privados, filantrópicos ou confessionais. Todos devem seguir o marco ético da laicidade do Estado e as políticas públicas de saúde. O que isso significa? Que os hospitais não podem negar procedimentos contraceptivos em razão de valores religiosos.

Não há moral religiosa que justifique a proibição de acesso a serviços de contracepção se os procedimentos forem considerados como básicos e essenciais à saúde. Esse é o caso do dispositivo intrauterino (DIU), cujo serviço foi negado pelo Hospital São Camilo, de São Paulo, sob alegação de objeção de consciência institucional. Há vários equívocos no ocorrido, até mesmo o de ter havido discriminação contra Leonor Macedo, 41, a mulher que teve o DIU negado.

Entrada da unidade Ipiranga, na zona sul de São Paulo, do Hospital São Camilo - Divulgação - Divulgaçao Sao Camilo

A saúde pública é laica no Brasil. Isso significa que serviços vinculados ao SUS com ideologia religiosa submetem-se ao que a política pública de saúde determinar como essencial para a proteção à saúde. O DIU está na lista de medicamentos essenciais, o que, segundo a Organização Mundial da Saúde, são "de importância máxima e indispensáveis para atender às necessidades de saúde da população". Não importa se o procedimento é de risco à saúde, ou se haveria emergência ou urgência no atendimento. É o caráter "essencial" de proteção às necessidades de saúde que determina que o serviço não deve restringir o acesso por razões de moral privada institucional.

O planejamento familiar é um conjunto de políticas que protege as necessidades das pessoas em saúde sexual e reprodutiva. É sobre ter ou não filhos, é sobre como cuidar do próprio corpo. O DIU é um método seguro, efetivo e que permite um planejamento mais prolongado da contracepção, sem a necessidade de uma rotina de medicalização diária, como são os contraceptivos orais. As políticas de planejamento familiar são baseadas em evidências científicas e cabe apenas às pessoas usuárias dos métodos a decisão sobre suas preferências. Ou seja, somente Leonor poderia ponderar sobre o uso dos métodos oferecidos de acordo com suas necessidades ou crenças. É preciso mudar a perspectiva sobre quem deve ser ouvida sobre as crenças religiosas —é a pessoa usuária dos serviços de saúde na proteção de suas necessidades essenciais, não a instituição.

Há quem sustente, equivocadamente, o direito à objeção de consciência institucional. O Hospital São Camilo é uma entidade confessional católica e, portanto, reclama para si o direito de recusar a realização de determinados procedimentos contraceptivos. Não existe essa prerrogativa e apresento duas razões.

A primeira é que a recusa de assistência de serviços básicos deve ser entendida como uma violação da política de saúde para proteção de necessidades essenciais. A recusa pode ser interpretada como um ato de abuso de poder ou de omissão de cuidado, ou mesmo como uma prática discriminatória por razões de crença. A segunda razão é que as políticas públicas em saúde se baseiam em evidência científica e são amparadas pelo marco legal: o DIU é seguro e eficaz, o que torna desimportante como a religião católica o define em termos morais.

O certo ou errado neste caso não deve ser analisado à luz de riscos à saúde ou pelo caráter eletivo ou de urgência dos procedimentos contraceptivos. Necessidades de saúde nem sempre são urgentes, porém são sempre essenciais. No caso do DIU, não há dúvidas sobre seu caráter essencial para a política de planejamento familiar. A saúde pública não deve se subordinar às preferências morais de hospitais com privilégio de receber recursos do SUS, de operar como medicina mercantil privada —e de ainda esquadrinhar a assistência em saúde de acordo com uma moral religiosa que ofende à laicidade do Estado brasileiro.

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