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Guilherme Guimarães Feliciano

A proposta do governo que regulamenta o trabalho de motoristas de aplicativos é adequada? NÃO

Mais um pouco de caos; é ruim na perspectiva da transparência de dados, sindical e remuneratória

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Guilherme Guimarães Feliciano

Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho; ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-2019)

No último dia 4, o governo encaminhou ao Congresso o PLP 12/2024, a fim de regular "a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas". O curioso é que, para isso, aprofunda o caos em um inaudito fenômeno de entropia normativa. O projeto é ruim na perspectiva da transparência de dados, sindical, remuneratória, da saúde e segurança e até mesmo nos fundamentos dogmáticos. Fiquemos apenas com os três últimos aspectos.

A proposta cria um piso remuneratório de R$ 32,10/h, composto por R$ 8,03 de retribuição pelos serviços e de R$ 24,07 a título de ressarcimento de custos. Parece um avanço, mas não é. Suponha-se que o motorista conduza por uma hora a 120 km/h (rodovia). Se o veículo faz 15 km/l, com a gasolina a R$ 5,74/l, esse motorista partirá de um custo de R$ 45,92/h (afora depreciação, manutenção, seguro etc.). Noutras palavras, o trabalhador estará pagando para trabalhar, sem qualquer garantia do salário mínimo hora. As empresas de aplicativo obviamente poderão pagar mais do que esses R$ 32,10/h (já o fazem hoje); mas o fato é que a lei as autorizará a reduzir a retribuição do motorista até esse patamar. Voltaremos ao século 18.

Celular com o aplicativo do Uber - Zanone Fraissat/Folhapress

Quanto à jornada, o art. 3º, §2º, do PLP dispõe que o período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar 12 horas diárias. Essa é uma das maiores distorções do projeto, agredindo diretamente o limite humanitário estabelecido pelo art. 7º, XIII, da Constituição (8 horas diárias). Ademais, não se asseguram descansos remunerados no curso da semana ou do mês, o que levará os motoristas a prorrogarem suas jornadas, para além das 12h/dia, em outras plataformas a que estejam vinculados. Nada mais inapropriado. Se o motorista dedicar 8 h à sua vida privada em vigília e outras 12 h ao trabalho nos aplicativos, vai dormir cerca de 4 h/dia; e, segundo estudos diversos, dirigir com menos de 5 h de sono é tão arriscado quanto conduzir embriagado.

Aliás, não por outra razão, o art. 235-C da CLT, na redação da lei 13.103/2015, dispõe que a duração da jornada diária do motorista celetista é de 8 h, admitindo-se excepcionalmente, por negociação coletiva, o regime 12 x 36; e não se tolera, para o motorista profissional com passageiros, a condução por mais de 5 h ininterruptas (art. 67-C do Código de Trânsito). Por que seria diferente para motoristas "autônomos"? Seremos nós e eles nas estradas da vida...

Por fim, o projeto comete, já à partida (art. 3º), o seu pecado capital: pretende afastar a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício entre o motorista e a empresa de aplicativo. Isso depois de declarar textualmente a onerosidade ("transporte remunerado privado individual") e a pessoalidade ("cadastro pessoal e intransferível") e insinuar a subordinação, como se vê no art. 5º, I a V: medidas para manter a qualidade dos serviços (poder de modular), sistemas de acompanhamento em tempo real dos serviços (poder de fiscalizar) e direito de suspender, bloquear e excluir o motorista (poder de punir).

Aliás, a subordinação pelo algoritmo já tem previsão legal, a teor do art. 6º, §1º, da CLT ("meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão"). Seria o caso, pois, de aplicar a CLT, uma vez verificada a subordinação (conforma a arquitetura algorítmica da plataforma) e a habitualidade dos serviços concretamente prestados "por intermédio" da empresa (na verdade, para ela: tais empresas são indiscutivelmente empresas prestadoras de serviços de transporte).

O que o governo Lula pratica, porém, é a mesma "engenharia jurídica" tentada pelo governo Itamar Franco, em 1994, com o malsinado parágrafo único do art. 442 da CLT (hoje, §1º), quando pretendeu afastar o vínculo de emprego entre trabalhadores "cooperados" e cooperativas ou tomadores de serviços. À altura, a Justiça do Trabalho soube arrostar o ilícito, com base no art. 9º da CLT, e varreu do território nacional as "cooperativas de mão de obra" fraudulentas, mercê da máxima primordial da declaração dos fins e objetivos da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (1944): trabalho não é mercadoria.

Hoje, à vista da jurisprudência que tem se desenhado no STF (p. ex., Rcl 59795/MG), os tribunais trabalhistas conseguirão atuar como antes? Improvável.

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