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Guilherme Guimarães Feliciano e José Roberto Dantas Olivas

O trabalho deve ser liberado a partir dos 14 anos? NÃO

PEC da infância perdida; além de socialmente cruel, é gritantemente inconstitucional

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Guilherme Guimarães Feliciano

Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), é professor da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho; conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (2024-26)

José Roberto Dantas Olivas

Advogado trabalhista e juiz titular de vara do trabalho aposentado, é professor e autor de “O Princípio da Proteção Integral e o Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil”; ex-membro da Comissão de Erradicação do Trabalho Infantil (2012-18)

Depois de mais de 13 anos de tramitação, três pareceres contrários e dois a favor, eis que a proposta de emenda à Constituição 18/2011, que pretende reduzir a idade mínima para o trabalho para 14 anos, volta a tramitar na Câmara dos Deputados. Pior: com parecer favorável —que agora empata o placar em 3 a 3— do novo relator, deputado Gilson Marques (Novo-SC).

Está apta para ser votada e pronta para pauta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Em pleno governo trabalhista, pautas de retrocesso social ganham espaço, notadamente nos atuais (des)caminhos do direito do trabalho...

Pior exemplo disso, a PEC ressuscitada, que há muito deveria estar sepultada, além de socialmente cruel, é gritantemente inconstitucional.

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Criança que trabalha em praça de São Paulo exibe dinheiro que recebeu na rua - Zanone Fraissat - 11.jul.19/Folhapress

O art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal, ao proibir qualquer trabalho a menores de 16 anos (salvo como aprendiz, a partir de 14), veicula direito social fundamental de concretização individual. É, por isso, cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Ademais, o texto da PEC 18 agride o art. 227, caput, da CF, pelo qual é dever do Estado "assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito [...] à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não obstante, a PEC 18 retoma a tramitação, com outras seis a ela apensadas, cinco das quais propondo a mesma coisa: redução da idade mínima para o trabalho.

Há entre nós mitos que ressurgem, replicam-se e se recusam a morrer, talvez em razão da cultura escravagista e predatória impregnada na nossa história colonial e imperial. Insiste-se agora em política legislativa que sacrifica a infância e a adolescência, alimenta o mercado com trabalhadores pouco qualificados e predispõe ao trabalho informal.

A idade mínima para o trabalho deve se compatibilizar com a da escolarização compulsória. É o que prescreve a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil; e, por isso, de observância obrigatória, em seu art. 2º, item 3: a idade mínima de admissão ao emprego ou ao trabalho "não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação escolar, ou em todo caso, a quinze anos".

Desde 2009 (EC 59) a Constituição estabeleceu ser a educação obrigatória (e gratuita) para pessoas dos 4 aos 17 anos (art. 208, I). Assim, o ensino médio, agora compulsório, em situação de normalidade só concluído às vésperas de o adolescente completar 18 anos, é impeditivo do retrocesso pretendido e implica elevação —e não redução— da idade mínima de 16 anos.

Aliás, a lei 9.394/1996 (Diretrizes e Bases da Educação) se adequou à previsão constitucional (art. 4º, I e ss.) e determina que os ensinos fundamental e médio devem ter a carga horária mínima anual elevada para 1.400 horas-aula (art. 24, § 1º) —o que, a rigor, torna impraticável a compatibilização de trabalho e estudo antes da conclusão da educação básica, pois, quando dividida por 200 dias letivos, resulta em 7 horas-aula diárias.

O insuperável psicólogo infantil suíço Jean Piaget (1896-1980) já afirmava, em meados do século 20, que "brincar é o trabalho da infância". Meio século depois, vozes do Parlamento ensaiam erodir os direitos da infância e da adolescência, reinventando a roda (da fortuna alheia).

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