O direito ao aborto é garantido pela Constituição francesa desde março de 2024. O livro "O Acontecimento", da francesa Annie Ernaux, Nobel de Literatura em 2022, narra um aborto clandestino realizado pela autora na década de 1960. A obra foi objeto de leitura coletiva das integrantes da comunidade Todas no WhatsApp e rendeu um encontro com a jornalista da Folha e crítica literária Gabriela Mayer nesta segunda-feira (6).
O debate virtual girou em torno das memórias de Ernaux, que resgata em sua escrita também o contexto social em que viveu, mostrando o aborto, especialmente o clandestino, como um evento violento e solitário vivido pelas mulheres. A autora é considerada uma pioneira no estilo da autoficção.
Gabriela Mayer aponta para a importância da linguagem, uma vez que a autora se preocupa em não utilizar termos como "aborto" e "gravidez" e se distancia de um vínculo com o feto ao longo de seus diários recuperados no livro. Para ela, a clandestinidade também furta das mulheres a possibilidade de nomear suas experiências, além de impedir que se conectem e apoiem.
Em passagem final da obra, a autora fala sobre eliminar a culpa em torno do ''acontecimento'' ao escrever sobre ele.
"Para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte", escreve. "O que ela faz de melhor pelo feminismo é bancar o desejo de escrever", diz a jornalista Janaína Castro, 43.
Ao longo do livro também há demonstrações de uma diferença de tratamento a mulheres de diferentes classes sociais, especialmente em ambientes hospitalares: Ernaux relata ter sido maltratada pelo médico residente ao chegar com um quadro hemorrágico ao hospital.
Gabriela Mayer aponta que Ernaux é uma "trânsfuga de classe" e mudou o patamar intelectual de sua família, experiência perceptível em sua escrita quando narra episódios como este.
Além disso, a violência refletida no tratamento à mulher que sofre complicações em decorrência de um aborto foi entendida pelas leitoras como negligência ao corpo feminino. Para a médica Carolina Almeida, 30, as mulheres não são amparadas nem pela lei nem pelos médicos –que deveriam, por ética, atendê-las adequadamente em qualquer contexto.
As leitoras falam da grandiosidade do debate gerado e como os temas do aborto clandestino e da violência aos corpos das mulheres suscitaram reflexões e angústias. "O livro é curto [74 páginas], mas diz mais que muitos calhamaços por aí", afirma Lina Freitas, 34, professora de história.
O debate virtual foi o segundo de uma série de leituras coletivas proposta pelas participantes da comunidade.
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