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Autoritários: como Ortega empurrou milhares de nicaraguenses ao exílio

Podcast conta como Daniel Ortega passou de guerrilheiro a ditador, intensificando a repressão a partir de 2018

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São Paulo

Era 1 da tarde de uma quarta-feira em Los Guido, um bairro na periferia de San José, capital costarriquenha. A nicaraguense Martha Lira, conhecida como Dona Martha, havia preparado a mesa para a minha chegada. Sobre o móvel, ela havia colocado um pano branco e azul –as cores da Nicarágua. Por cima do tecido, Martha espalhou camisetas estampadas com fotos do filho, Agustín Ezequiel Mendoza, alguns vasos de flores e duas velas. Ela disse que essa é uma maneira de manter vivos seu legado e sua memória.

O ditador nicaraguense Daniel Ortega - Yamil Lage/Pool via Reuters

Agustín foi assassinado em junho de 2018, aos 22 anos, durante os protestos contra a Reforma da Previdência que foram reprimidos brutalmente pelo regime de Daniel Ortega. À medida que os atos foram se espalhando e ganhando apoio, os manifestantes passaram a pedir também reformas democráticas no país.

A partir de 2018, Ortega recrudesceu a perseguição aos críticos do regime. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos estima que pelo menos 2.000 pessoas ficaram feridas e outras 355 morreram desde o começo dessa crise política mais aguda na Nicarágua. Uma das vítimas foi a brasileira Raynéia Gabrielle Lima, que estudava medicina na capital e foi atingida por um tiro enquanto dirigia em um bairro rico da cidade –ela não estava envolvida nos protestos.

O sétimo episódio do podcast Autoritários explica como Ortega passou de guerrilheiro da Revolução Sandinista a ditador, e conta as histórias dos que tiveram que se exilar para salvar a própria vida —também daqueles que morreram vítimas da repressão.

A nicaraguense Martha Lira prepara mesa em homenagem ao filho morto nos protestos de 2018 na Nicarágua
A nicaraguense Martha Lira prepara mesa em homenagem ao filho morto nos protestos de 2018 na Nicarágua - Ana Luiza Albuquerque/Folhapress

Foi o caso de Agustín, que disse à mãe que daria a vida pelo país. "Todos os jovens assassinados tiveram um amor enorme pela pátria", afirma Martha.

Depois da morte do filho, ela não quis mais voltar para a Nicarágua, nem para visitar. Martha diz que tudo tem seu tempo e que uma hora o regime vai cair. "Não há mal que dure 100 anos, nem corpo que o resista, não é?".

A série narrativa em áudio da Folha se debruçou sobre o processo de crise democrática em curso no mundo. Cada episódio contou sobre um líder autoritário contemporâneo: Narendra Modi (Índia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil), Nayib Bukele (El Salvador) e Daniel Ortega (Nicarágua). Um programa extra será publicado nas próximas semanas.

Foram oito meses de pesquisa, seis viagens e dezenas de entrevistas com políticos, pesquisadores, jornalistas, ativistas e, principalmente, cidadãos que têm suas vidas afetadas diretamente pelo autoritarismo.

Apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários foram feitos pela repórter Ana Luiza Albuquerque. Há oito anos na Folha, Ana Luiza trabalha na editoria de política e é mestre em jornalismo político pela Universidade Columbia (EUA).

A edição de som do projeto é de Raphael Concli. A coordenação é de Magê Flores e Daniel Castro, a produção no roteiro é de Victor Lacombe e a supervisão é de Gustavo Simon. A identidade visual é de Catarina Pignato.

Os episódios podem ser ouvidos no site da Folha e nas principais plataformas de áudio.

AUTORITÁRIOS
quando quintas-feiras, às 8h
onde nas principais plataformas de podcast

Podcast Autoritários
Podcast Autoritários - Catarina Pignato

LEIA A TRANSCRIÇÃO DO SÉTIMO EPISÓDIO

ORTEGA E OS EXILADOS DA NICARÁGUA

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin Martínez é um jovem nicaraguense de 18 anos. Na primeira vez que eu falei com ele, pelo telefone, ele vivia exilado na Costa Rica fugindo do regime ditatorial de Daniel Ortega.

Antes do exílio, ele era coroinha numa pequena cidade a uma hora de carro da capital da Nicarágua, Manágua. Lá ele trabalhava com um sacerdote chamado Manuel García, que foi preso em circunstâncias… pouco claras. Nos últimos anos, Ortega ampliou a perseguição contra a Igreja Católica, que costuma denunciar os abusos da ditadura, e prendeu mais de 10 padres.

[reportagem Globo] O papa Francisco manifestou hoje preocupação com a situação na Nicarágua. Nos últimos dias, a Igreja Católica tem sido palco de atos repressivos por parte do regime de Daniel Ortega, que está no poder desde 2007.

Ana Luiza Albuquerque: Depois que o sacerdote García foi preso, a polícia nicaraguense passou a ameaçar o Kevin e ele chegou a ser agredido por um policial. Foi aí que ele decidiu deixar o país.

No dia 31 de dezembro de 2022, quando tinha 17 anos, ele cruzou a fronteira. O Kevin foi para uma cidade litorânea na Costa Rica e passou a morar em uma paróquia. Em setembro do ano passado, quando a gente marcou uma entrevista, eu achava que ele ainda estava ali.

No dia 20 daquele mês, eu mandei um link para ele entrar numa chamada de vídeo comigo. O Kevin respondeu: "excelente". E logo depois chegaram duas mensagens que me assustaram. Ele perguntou: "e se a gente falasse agora? Eu tô com medo de ser preso mais tarde". O Kevin tinha voltado para a Nicarágua.

Ele entrou na chamada pelo celular. O Kevin estava numa praça no vilarejo de Diriomo, onde ele cresceu e onde mora a família dele.

Kevin Martínez: Estoy acá en Diriomo, en mi pueblo.

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse que tinha voltado para a Nicarágua porque os avós, que o criaram e o incentivaram a entrar na Igreja, tinham morrido. Ele queria se despedir.

Kevin Martínez: Yo me sentía muy adolorido, digo yo, al menos yo quiero ir a verlos así, al menos yo quiero ir a despedirme, a decirle un último adiós.

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin falou que, depois que ele saiu do país, a polícia chegou a dizer que ele poderia voltar, que nada aconteceria com ele. Mas no dia que a gente se falou, uma meia hora antes, a polícia tinha levado o Kevin para a delegacia para checar os antecedentes dele. Ele foi solto, mas os policiais disseram que voltariam a vê-lo.

O Kevin estava muito inquieto e preocupado durante a ligação. Ele dizia que não tinha dinheiro para voltar para a Costa Rica e que estava com muito medo que alguma coisa acontecesse com ele. O Kevin acreditava que seria preso naquele dia. Ele estava na praça porque achou melhor ficar num lugar público, com gente em volta.

Kevin Martínez: Yo siento dentro de mí de que no pasa de hoy, de que hoy me dejen encarcelado aquí en Nicaragua. No pasa de hoy.

Ana Luiza Albuquerque: Então as coisas foram ficando mais tensas. Os policiais estavam na praça e o Kevin virou a câmera para me mostrar o movimento deles.

Kevin Martínez: Ahí, mira, estos de azul con negro. Esa es la policía.

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse que estava sendo perseguido pelos policiais, que viam o que ele estava fazendo, onde, com quem.

Kevin Martínez: Aquí los tengo. Ellos andan detrás de mí. Mi gran miedo es de que me lleven a hacer algo.

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin é magro e tem cara de menino. Eu estava preocupada com o que poderiam fazer com ele. E eu me sentia responsável também, porque era a única pessoa que sabia em tempo real o que estava acontecendo. Não tinha ninguém que pudesse proteger o Kevin e ele estava tão nervoso que até passou mal.

Kevin Martínez: Ai, parece que se me bajó la presión.

Ana Luiza Albuquerque: Eu entendi que para ele era importante que a gente continuasse se falando. Se ele fosse preso, ele queria que todo mundo soubesse. Aí, com 18 minutos de chamada, outras vozes masculinas apareceram na conversa. O Kevin olhou para o lado e a ligação foi encerrada. Um minuto depois, ele mandou no Whatsapp: "me prenderam".

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque e esse é o sétimo episódio do Autoritários: um podcast da Folha que investiga líderes contemporâneos que ameaçam a democracia e as conexões entre eles. O projeto tem apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting. A série termina aqui, mas em breve a gente publica um episódio extra, sobre mais um líder autoritário.

Ana Luiza Albuquerque: Um pouco em choque, eu desci as escadas da redação da Folha, contei para alguns colegas o que tinha rolado e mandei mensagens para avisar ativistas do que tinha acontecido com o Kevin. No dia seguinte, a notícia da prisão dele já tinha saído em alguns veículos locais.

[reportagem Confidencial] La policía del régimen secuestró al joven nicaraguense exiliado en Costa Rica Kevin Martínez Aleman cuando regresó al país para visitar a sus familiares.

Ana Luiza Albuquerque: Eu não tinha ideia do que poderia acontecer. Era possível que tivessem prendido o Kevin para dar um susto, e que ele fosse solto logo.

Ele acabou liberado três dias depois, mas o número que eu tinha dele não estava mais recebendo mensagens, e eu só consegui falar com ele no mês seguinte, em um outro telefone. A gente fez outra chamada de vídeo, e ele me contou o que aconteceu. O Kevin estava de volta à Costa Rica.

Ele disse que primeiro os policiais pegaram o celular dele e o levaram para a delegacia, onde ele ficou o dia todo. Depois, o mandaram para uma prisão em Granada, a uns 15 minutos de carro dali. Ele me falou que não recebeu comida nem água, que tiraram a roupa dele e o obrigaram a fazer 100 agachamentos. Aí, de noite, ele foi levado para outra prisão, na capital. O Kevin falou que foi interrogado a noite inteira, agredido e xingado.

Kevin Martínez: Y luego me fueron a levantar a golpes y a "Levántate, que chavalo, hijo de p, apúrate, quién te manda a andar de m?".

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse que os policiais perguntavam se a militância na Costa Rica estava sendo treinada com armamento. O Kevin falou para eles que não sabia de nada e apanhou mais.

Kevin Martínez: Nada se habla de eso, le digo. Entonces pues me golpeaban, me golpeaban.

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin me disse que o governo o acusa de receber financiamento dos "imperialistas americanos". Ele contou que foi levado a um juiz e condenado a dez anos de prisão por traição à pátria, lavagem de dinheiro e financiamento da oposição. Depois disso, entregaram um documento para ele assinar. Segundo o Kevin, esse documento dizia que ele abria mão da nacionalidade nicaraguense. Ele foi obrigado a assinar.

Kevin Martínez: Yo no lo quería firmar, pero a mí me obligaron a firmarlo a golpes.

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin foi levado de volta para a cela, onde disse que acabou desmaiando. Ele tem um problema no coração, o que piorou as coisas. Segundo ele, os batimentos estavam muito acelerados.

Kevin Martínez: El corazón lo tenía súper, súper, súper acelerado, primero por lo débil y segundo por toda la preocupación y todos los nervios.

Ana Luiza Albuquerque: Daí o Kevin contou que foi tirado da cela mais uma vez e colocado numa caminhonete. Ele pensou que o levariam para o Chipote, a principal prisão da Nicarágua, onde presos políticos relataram terem sido torturados, segundo organizações de defesa dos direitos humanos. O Kevin disse que foi amarrado e que colocaram uma venda no rosto dele. No caminho, ele foi golpeado no estômago e no olho. Eles então o mandaram descer do carro e o ameaçaram com uma pistola.

Kevin Martínez: Estaban poniendo en dirección a mí esa pistola y yo tenía miedo y yo lloraba y yo decía "a que hora me vine a meter a Nicarágua".

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin falou que foi levado pelos policiais para Peñas Blancas, uma cidade na fronteira com a Costa Rica. Eles mandaram ele descer da caminhonete de novo. E, segundo o Kevin, disseram que se ele voltasse para a Nicarágua seria preso e que se falasse com jornalistas ou organizações internacionais acabaria morto.

Agentes migratórios na Costa Rica ajudaram o Kevin a chegar à capital, onde ele também foi atendido por organizações de defesa dos direitos humanos. Quando a gente se falou, em setembro, ele contou que também não se sentia seguro no país, onde estava sozinho. Ele tinha medo que algo acontecesse e como isso afetaria a família dele.

Kevin Martínez: Yo tengo mucho miedo porque completamente estoy solo. Mi familia no sé de qué manera podría recibir la noticia si algo me llegara a pasar.

Ana Luiza Albuquerque: O Kevin disse que já sofreu perseguições e ameaças na Costa Rica e que tem medo que Ortega tenha infiltrados ali. Desde 2018, mais de 200 mil nicaraguenses fugiram para o país vizinho.

Em novembro o Kevin conseguiu se mudar para os Estados Unidos.

Ana Luiza Albuquerque: Daniel Ortega está no quarto mandato consecutivo como presidente da Nicarágua. Ele nasceu em 1945 em La Libertad, pequena cidade a três horas de carro da capital Manágua. Nos anos 60, Ortega se juntou à Frente Sandinista de Libertação Nacional, um grupo revolucionário de esquerda que fez parte da luta armada contra a ditadura da família Somoza.

Fred Maciel: Basicamentea gente consegue associar isso a um movimento de luta antiditatorial, em oposição a um governo familiar do Somoza, que se instaurou ali mais ou menos em meados dos anos 30 até esse finalzinho dos anos 70.

Ana Luiza Albuquerque: Esse é o Fred Maciel, historiador e professor da Universidade Estadual do Paraná, que estuda a Nicarágua há mais de dez anos. Ele cita a ditadura hereditária da família Somoza, que controlou o país por mais de quatro décadas –primeiro o pai, Anastasio, e depois, os filhos, Luis e Anastasio também.

Fred Maciel: A gente estava falando de um tipo de governo de caráter também autoritário, centralizador, voltado para um aspecto familiar.

Ana Luiza Albuquerque: O Fred diz que, durante a Revolução Sandinista, Ortega ainda não tinha um papel muito relevante.

Fred Maciel: É bem interessante perceber que durante aquele momento de luta antiditatorial ele nunca foi uma figura central do processo ou da própria Frente Sandinista enquanto movimento insurrecional, por exemplo. O seu próprio irmão, Humberto Ortega, era muito mais relevante, muito mais impactante naquele momento do que ele.

Ana Luiza Albuquerque: A ex-guerrilheira Dora María Téllez, que ficou conhecida como "comandante 2" durante a revolução, conheceu Ortega em 1977. Eu conversei com a Dora, e ela diz que naquela época não dava para notar qualquer aspiração autoritária dele, talvez por causa do contexto: o comando da Frente Sandinista era totalmente coletivo.

Dora Téllez: Yo creo que las ambiciones de poder de la gente se van desarrollando en el tiempo, empeorando en la medida en que va teniendo cuota mayor de poder.

Ana Luiza Albuquerque: A dinastia dos Somoza, que eram aliados dos Estados Unidos, durou até 1979. Em julho daquele ano, os sandinistas tomaram o poder, depois de meses de guerra civil. Aí foi criada a Junta de Reconstrução Nacional para governar o país temporariamente.

Fred Maciel: A gente vai ter lá até 84 uma junta de governo…

Ana Luiza Albuquerque: Aqui, o Fred de novo.

Fred Maciel: …que inclusive o próprio Daniel Ortega fez parte, junto com mais outros quatro personagens. Tanto o Humberto quanto o Daniel Ortega sempre foram vistos como figuras, digamos, menos radicais frente aos demais membros da Frente Sandinista.

Ana Luiza Albuquerque: O Fred diz que esse aspecto mais moderado do Ortega, naquela época, fez com que ele fosse escolhido para participar da junta de governo.

Fred Maciel: Eles escolhem o Daniel Ortega por ser uma figura, digamos, menos problemática naquele momento. Talvez outros personagens radicalizassem mais o processo, trariam mais problemas internos e geopolíticos também.

Ana Luiza Albuquerque: Em 1984 os sandinistas convocaram eleições e Ortega venceu —e assumiu como presidente pela primeira vez. Em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos passaram a intervir na Nicarágua, numa tentativa de derrubar o governo de esquerda da Frente Sandinista, que estava na órbita da União Soviética.

O presidente Ronald Reagan enviou dinheiro, armas e equipamentos para grupos armados de oposição que ficaram conhecidos como os Contras da Nicarágua. Em 1986, o Congresso americano aprovou uma ajuda de 100 milhões de dólares à guerrilha, a pedido do Reagan.

Ronald Reagan: The only way to bring true peace and security to Central America is to bring democracy to Nicaragua. Can we responsibly ignore the long-term danger to American interests posed by a communist Nicaragua?

Ana Luiza Albuquerque: Os Estados Unidos também aplicaram sanções econômicas contra a Nicarágua. Então esse primeiro governo do Ortega ficou muito voltado para questões militares, tentando lidar com os Contras. E a população ficou cansada daquele clima bélico.

Fred Maciel: Sem falar na própria economia, muito fragilizada justamente por essa ação contrarrevolucionária que fez com que os próprios interesses principais se voltassem para a defesa e não para um aspecto mais desenvolvimentista ou outros aspectos que pudessem aprimorar essa situação nacional nicaraguense naquele momento.

Ana Luiza Albuquerque: Ortega tentou se reeleger nas eleições de 1990, mas perdeu para a candidata liberal da oposição, Violeta Chamorro.

Fred Maciel: É justamente essa derrota eleitoral, lá em fevereiro de 1990, que marca essa transição do que era o sandinismo, algo mais massivo, mais popular, para algo mais pessoalizado, personalizado e cada vez mais direcionado à figura do Daniel Ortega.

Ana Luiza Albuquerque: Depois da derrota, o Ortega passou a ter um papel fundamental na oposição.

Fred Maciel: A gente pode, sim, dizer que, principalmente nessas últimas décadas, especialmente a partir dessa metade dos anos 80, o Daniel Ortega vai ser talvez a figura política central da história nicaraguense.

Ana Luiza Albuquerque: O caráter controlador e autoritário dele também começou a aparecer mais na década de 90, o que foi gerando cisões no partido da Frente Sandinista.

Fred Maciel: Aqueles diferentes grupos que não vão concordar com esse aspecto mais centralizador e também de divergências de ação política, vão gradativamente se distanciando dessa esfera mais centralizadora do Ortega. Por que qual era a proposta do Ortega pós 90? Manter um ambiente mais militarizado, mais de combater, mesmo sabendo que ele tinha sido derrotado via eleitoral. Ele queria manter esse ambiente quase guerrilheiro no processo nacional.

Ana Luiza Albuquerque: A Dora Téllez, que tinha sido guerrilheira com o Ortega, saiu do partido por causa do autoritarismo dele. Ela e alguns companheiros fundaram uma nova legenda em 1995. A Dora diz que, alguns anos antes, começou uma discussão na Frente Sandinista sobre democratizar o grupo, que tinha o poder concentrado na Direção Nacional.

A ideia era abrir espaço para debates e tomadas de decisão em conjunto. Ortega se negou totalmente a abrir mão do poder e à medida que outros integrantes foram saindo, ele foi tomando ainda mais controle do partido.

Dora Téllez: Fue imposible avanzar en el proceso de democratización porque el propio Ortega se oponía rotundamente usando todo tipo de mecanismo.

Ana Luiza Albuquerque: O Ortega disputou a Presidência de novo em 1996 e em 2001, mas perdeu. Em 2006, ele conseguiu se eleger outra vez, com 38% dos votos. A vitória só foi possível porque anos antes ele tinha feito um acordo com o então presidente Arnoldo Alemán, do Partido Liberal Constitucional. Eles concordaram em baixar de 45% para 35% a votação mínima para ser eleito.

Naquele pleito, Ortega apostou em um discurso mais tranquilo, de reconciliação, atenuando a imagem de guerrilheiro. Mas o que se viu quando ele chegou ao poder foi bem diferente, como explica o Fred.

Fred Maciel: No seu retorno enquanto presidente, lá em 2007, ele vai tentar controlar todos os meios de comunicação. Então a gente chega em um momento de que nove canais de televisão aberta, oito vão estar vinculados à família Ortega.

Ana Luiza Albuquerque: Em 2014, já depois de uma primeira reeleição do Ortega, a Assembleia Nacional da Nicarágua, controlada pelos governistas, reformou a constituição e garantiu a ele a reeleição sem limites. Dois anos depois, o Supremo Conselho Eleitoral, também dominado por aliados do presidente, destituiu todos os 16 deputados opositores no Congresso.

Não existe mais oposição organizada dentro da Nicarágua. As universidades tiveram a direção tomada pela ditadura e os meios de comunicação independentes precisaram se transferir para outros países.

[reportagem CNN Brasil] Até agora o governo do país não comentou por que removeu o sinal da CNN em espanhol do ar.

Ana Luiza Albuquerque: Ao longo dos anos, o regime prendeu centenas de pessoas por motivos políticos e causou um êxodo histórico. Mais de 600 mil nicaraguenses deixaram o país entre janeiro de 2018 e junho de 2023, segundo um dos principais grupos ativistas da região, o Coletivo de Direitos Humanos Nicarágua Nunca Mais. Num país de cerca de 7 milhões de pessoas, isso equivale a 9% da população.

Ortega perseguiu duramente opositores, jornalistas e integrantes da Igreja Católica, como o Kevin, que você ouviu no começo do episódio. Um dos casos mais marcantes foi o do bispo Rolando Álvarez, condenado a 26 anos de prisão em 2023 por traição à pátria.

[reportagem TV Cultura] Na Nicarágua, o bispo Rolando Álvarez voltou a ser preso depois de apenas 2 dias em liberdade. O religioso se recusou a abandonar o país, condição imposta pelo governo de Daniel Ortega para que ele fosse solto.

Ana Luiza Albuquerque: Em janeiro, depois de um acordo entre o governo e o Vaticano, Rolando Álvarez foi solto outra vez e aceitou ir para Roma.

O Ortega tem sistematicamente tirado a cidadania de críticos do governo. As eleições são de fachada e qualquer candidato competitivo é colocado atrás das grades.

[reportagem Globo] Para assegurar a vitória, o presidente Daniel Ortega prendeu dezenas de opositores políticos, incluindo sete candidatos à Presidência. Na cédula, a única concorrência eram cinco candidatos pouco conhecidos, de pequenos partidos aliados ao governo.

Ana Luiza Albuquerque: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos diz que a Nicarágua se tornou um estado policial, com o silenciamento dos opositores e o fechamento dos espaços democráticos. A concentração de poder nas mãos do Ortega é o retrato do que pode acontecer quando um processo de erosão democrática não é interrompido a tempo.

Fred Maciel: A partir desse seu retorno em 2007, esse trato clientelista, aliado a essa espécie de um sistema de controle social, de vigilância, que vai sempre tentar suprimir esses descontentamentos e essas dissidências, isso vai trazer como consequência, por exemplo, minimizar o aparecimento de novas lideranças, de novos atores sociais.

Então, se você tem todas as instâncias políticas centralizadas em uma figura personalizada, em um grupo específico, você não abre possibilidade, inclusive, de sistematizar e de organizar oposições. Então ele soube fazer isso muito bem a partir de 2007.

Ana Luiza Albuquerque: Ortega voltou ao poder com a promessa de levar adiante os ideais de justiça social da Revolução Sandinista. O regime desenvolveu uma série de programas sociais, entre eles um inspirado no Fome Zero brasileiro. Mas críticos dizem que essas foram políticas assistencialistas, para manter a popularidade com a base, sem fazer reformas estruturais que melhorassem a vida da população a longo prazo.

Em 2019, um ano depois do começo de uma série de protestos reprimidos pelo governo, o Banco Mundial considerava a Nicarágua o segundo país mais pobre da América Latina.

Nos últimos 20 anos, Ortega se afastou de pautas importantes para a esquerda. Ainda em 2006, em campanha pela Presidência, ele apoiou a aprovação de uma lei que proibiu o aborto em qualquer situação. Opositores de esquerda também dizem que ele se aproximou das elites empresariais e seguiu a cartilha do FMI, o Fundo Monetário Internacional.

Hoje Ortega ainda é popular em certos setores sandinistas, especialmente pelos programas sociais. Mas ele não governa mais pela popularidade, e sim pelo medo. Na última campanha presidencial, de 2021, os meios de comunicação independentes apontaram que Ortega mal saiu às ruas, e quase não fez promessas para o mandato seguinte. Quando ele falou, foi para mobilizar as bases contra quem ele vê como inimigo.

Daniel Ortega: Esos obispos son terroristas también, claro que son terroristas. En otro país estariam juzgados ya.

Ana Luiza Albuquerque: Ele não precisava competir de verdade pelos votos.

Ana Luiza Albuquerque: Era 1 da tarde de uma quarta-feira em Los Guido, um bairro na periferia de San José, capital costarriquenha. A nicaraguense Martha Lira, conhecida como Dona Martha, tinha preparado a mesa pra minha chegada. Em cima dela, tinha um pano branco e azul –as cores da Nicarágua. A Martha colocou sobre ele camisetas estampadas com fotos do filho, Agustín Ezequiel Mendoza, alguns vasos de flores e duas velas. Ela disse que essa é uma maneira de manter vivos o legado e a memória dele.

O Agustín foi assassinado em junho de 2018, aos 22 anos, durante os protestos contra a reforma da Previdência que foram reprimidos brutalmente pelo regime do Ortega. À medida que os atos foram se espalhando e ganhando apoio, passaram a pedir também reformas democráticas no país. Um dos gritos mais populares igualava Ortega aos Somoza.

Manifestantes: Ortega, Somoza, son la misma cosa.

Ana Luiza Albuquerque: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos estima que pelo menos 2.000 pessoas ficaram feridas e outras 355 morreram desde o começo dessa crise política mais aguda na Nicarágua. Uma das vítimas foi a brasileira Raynéia Gabrielle Lima, que estudava medicina na capital e foi atingida por um tiro enquanto dirigia em um bairro rico da cidade –ela não estava envolvida com os protestos.

Alguns dias depois da morte da Raynéia, um segurança privado chamado Pierson Gutiérrez Solís assumiu a autoria do crime. A promotoria nicaraguense, que ofereceu denúncia contra ele, disse que Pierson atirou contra o carro da brasileira porque ela estava dirigindo de forma descontrolada e suspeita. Mas pessoas próximas dela acreditam que o segurança foi usado como bode expiatório para encobrir a participação de aliados do regime.

[reportagem Globo] De acordo com o reitor da Universidade Americana, em Manágua, Ernesto Medina, ela foi baleada por paramilitares. A embaixada do Brasil pediu explicações ao governo da Nicarágua.

Ana Luiza Albuquerque: O segurança foi julgado e condenado a 15 anos de prisão. Mas ficou só um ano preso, beneficiado por uma lei de anistia criada para libertar os responsáveis pela repressão aos protestos. A mãe da Raynéia segue cobrando justiça, assim como tantas outras mães –entre elas a Dona Martha, nicaraguense que encontrei na Costa Rica.

Martha Lira: Yo tengo… Hace 15 años que yo vine de inmigrante acá a Costa Rica.

Ana Luiza Albuquerque: O filho da Martha, Agustín, morou com ela na Costa Rica até os 17 anos, quando decidiu voltar para a Nicarágua. Ele queria estudar e trabalhar –o sonho dele era abrir um salão de beleza. Mãe e filho se falavam constantemente, mas ele não contou que estava participando dos protestos de 2018. A Martha acredita que ele não queria deixá-la preocupada.

Enquanto isso, ela lia notícias sobre a ditadura reprimindo as manifestações e se sentia mal pensando nas mães dos jovens assassinados.

Martha Lira: Yo decía "ay señor, pobrecitas esas madres", decía yo "que están sufriendo".

Ana Luiza Albuquerque: Até que uma das netas da Martha ligou para ela e contou que o Agustín estava envolvido com os protestos. A Martha disse que ficou muito preocupada.

Martha Lira: Para mí ese momento fueron días de angustia, desesperación, porque yo estaba viendo lo que estaban pasando los jóvenes.

Ana Luiza Albuquerque: Então ela ligou para o Agustín.

Martha Lira: Yo le llamé, le dije "¿qué pasó, qué está pensando usted, por qué usted se metió a eso, a esa lucha?"

Ana Luiza Albuquerque: Ele disse que estava protestando porque se importava com a Nicarágua e que daria a vida pelo país.

A Martha contou que depois disso ela não tocou mais no assunto com o filho –só disse pra ele tomar cuidado e se esconder, se fosse o caso. Dava para ver que ela falava com orgulho não só do Agustín, mas dos outros jovens que protestaram contra a ditadura em 2018.

Martha Lira: Todos los jóvenes que asesinaron sinceramente tuvieron un amor tan grande por la patria.

Ana Luiza Albuquerque: Pouco depois do aniversário do filho, em junho, a irmã da Martha, que vive na Nicarágua, ligou para ela e disse que o Agustín estava ferido. A Martha ficou desesperada.

Martha Lira: "¿Cómo que lo hirieron?", lo digo yo. Cuando ella me dice "lo hirieron", o sea, yo me imaginé lo peor.

Ana Luiza Albuquerque: O Agustín foi baleado num protesto em Tipitapa, onde ele morava, a uns 30 km da capital. Segundo a Martha, paramilitares tinham ido lá destruir barricadas —que eram muito usadas nas manifestações. Ela disse que o Agustín tinha saído de casa para gravar o que estava acontecendo, quando foi atingido à queima roupa.

A Martha também disse que os paramilitares sabiam quem Agustín era e que já estavam o perseguindo.

Martha Lira: Él me decía que lo andaban buscando, que ya no podía dormir en la casa, que tenía que dormir en lugares diferentes.

Ana Luiza Albuquerque: Depois da morte do Agustín, a Martha não quis mais voltar para a Nicarágua, nem para visitar. Ela tem medo de ir ao país e ser acusada injustamente de algum crime. A Martha disse que tudo tem seu tempo e que uma hora o regime vai cair.

Martha Lira: Hay un dicho que dice "no hay mal que dure 100 años ni cuerpo que lo resista", verdad?

Ana Luiza Albuquerque: Daí ela repetiu aquele ditado:"Não há mal que dure 100 anos, nem corpo que o resista".

Até hoje não se sabe quem matou o Agustín –um padrão de impunidade observado desde 2018. O Grupo de Especialistas em Direitos Humanos sobre Nicarágua, vinculado à ONU, disse que pediu ao governo dados sobre investigações de assassinatos cometidos por policiais e grupos paramilitares pró-Ortega, mas não recebeu resposta. O grupo afirmou que não tem conhecimento de nenhuma condenação –pelo contrário, alguns funcionários supostamente envolvidos com a repressão teriam sido promovidos.

Rosario Murillo: La normalidad, la tranquilidad, la seguridad les irrita, les molesta, les enloquece.

Ana Luiza Albuquerque: Rosario Murillo, mulher do Ortega, chegou a chamar os manifestantes de pragas, vampiros e diabólicos.

Rosario Murillo: Lo comparo con los vampiros, que no pueden ver la luz.

Ana Luiza Albuquerque: Ela tem um papel de destaque no regime e é chamada de co-presidente pelo marido. Esse poder da Rosario dá um caráter familiar à ditadura, enquanto crescem os rumores de que Ortega não vai bem de saúde.

O governo reconhece 198 mortes nos protestos, mas culpa os próprios manifestantes, tratados como golpistas. Em julho de 2018, a ditadura aprovou uma lei antiterrorismo que foi usada para perseguir os ativistas. Em setembro do mesmo ano, Ortega proibiu qualquer protesto que pedisse o fim do regime. Cinco anos depois do começo das manifestações, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos contabiliza 2.090 pessoas presas e 322 que perderam a nacionalidade.

Em fevereiro de 2023, a ditadura de Ortega deportou 222 presos políticos para os Estados Unidos. Eles foram retirados da prisão e colocados num ônibus, sem saber para onde iam. Ali estava a elite política do país, estudantes, jornalistas, empresários. E só quando eles chegaram ao aeroporto descobriram para onde seriam enviados: Washington, a capital americana.

A Justiça, cooptada pelo regime, definiu que os opositores perderiam todos os direitos políticos. Eles ainda foram declarados "traidores da pátria". Isso é importante, porque pouco depois o Legislativo decidiu que os traidores da pátria perderiam automaticamente a nacionalidade nicaraguense, que se tornariam apátridas.

Num pronunciamento em rede nacional, ao lado da Rosario, Ortega disse que a mulher tinha procurado o embaixador dos Estados Unidos em Manágua e perguntado se o país poderia receber os presos. Ortega falou que não se tratou de uma negociação porque não exigiu nada em troca da soltura.

Daniel Ortega: No queremos que quede ningún rastro de los mercenarios del imperio en nuestro país.

Ana Luiza Albuquerque: Ortega também disse que a Nicarágua podia respirar aliviada depois da saída daqueles que chamou de golpistas e mercenários.

Daniel Ortega: Y que ahora que salieron los golpistas, los mercenarios, bueno, respiramos aquí en Nicaragua. Gracias a Dios. Y que viva Nicarágua, bendita y siempre libre.

Ana Luiza Albuquerque: A ex-guerrilheira Dora María Téllez, que você ouviu antes no episódio, era uma das presas políticas que estavam naquele avião. Ela tinha sido detida em junho de 2021, quando um grupo de policiais fortemente armados chegou na casa dela em Manágua.

Dora Téllez: Era un enorme despliegue policial, con varias patrullas de policía.

Ana Luiza Albuquerque: Ela foi levada para o Chipote, a temida prisão, e ficou por 1 ano e 8 meses numa solitária. As visitas da família eram inconstantes –às vezes demoravam meses– e ela não conseguia falar com os advogados. A Dora trocava só umas palavras com os agentes penitenciários, sobre assuntos práticos como comida e medicamentos.

Dora Téllez: Todo el resto del tiempo fue en silencio.

Ana Luiza Albuquerque: Ela conta que quase não batia sol na cela.

Dora Téllez: Casi totalmente oscura en realidad.

Ana Luiza Albuquerque: Os presos não tinham livros, papel ou lápis. Exercício era a única coisa que restava para fazer.

Dora Téllez: Absolutamente,si, eso es diseñado como tortura.

Ana Luiza Albuquerque: Um relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre violações nos protestos de 2018 apontou casos de tortura e maus-tratos aos presos políticos, especialmente no Chipote. Teve relatos de espancamentos, estrangulamentos, abuso sexual, e de pessoas que tiveram a pele queimada com armas de choque ou cigarro. Presos também disseram que foram vítimas de tortura psicológica, com ameaças de morte, por exemplo.

Nos interrogatórios, eles perguntaram o que a Dora sabia sobre uma longa lista de assuntos: os protestos de 2018, o papel da Igreja, os partidos, as organizações de massa, os jornalistas, os estudantes, supostos cursos de capacitação para os líderes dos movimentos… As perguntas se encaixavam no discurso do Ortega de que ele tinha sido vítima de uma tentativa de golpe orquestrada pelos Estados Unidos com apoio da Igreja Católica.

Dora Téllez: Es una mentalidad de Guerra Fría.

Ana Luiza Albuquerque: Em uma tarde de fevereiro de 2023, a Dora começou a perceber uma movimentação esquisita na prisão. Os agentes estavam passando com colchonetes e depois trouxeram mudas de roupas pros presos –normalmente, eles usavam um uniforme. A Dora achava que eles seriam levados para algum interrogatório, ou receberiam visita de alguma instituição como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ou a Cruz Vermelha.

Dora Téllez: Nadie sabía nada, nadie decía nada. Ya nos quedamos despiertos.

Ana Luiza Albuquerque: Por volta das 10 da noite, os presos receberam um pequeno sanduíche e uma Coca Cola, algo extremamente raro.

Algumas horas depois, eles foram colocados naqueles ônibus, mas ninguém dizia para onde eles iriam. A Dora pensou em três possibilidades: ou eles seriam mortos, ou levados para outra prisão ou para o aeroporto. A última opção estava certa.

Assim que eles desceram dos ônibus, apareceu um policial com papéis para serem assinados. O documento dizia que a pessoa estava consentindo a deportação para os Estados Unidos.

Dora Téllez: Firme aquí. Dice "no quiero firmar". Pero tiene que firmar.

Ana Luiza Albuquerque: A Dora acabou cedendo. Na manhã seguinte, os presos chegaram a Washington. E um dia depois foram informados que tinham perdido a nacionalidade nicaraguense e que os bens deles tinham sido confiscados.

Dora Téllez: El destierro es dolorosísimo, una cosa totalmente dolorosa.

Ana Luiza Albuquerque: Durante a ditadura do Ortega, alguns presos políticos deixaram a prisão com a condição de se exilarem. Mas o exílio nunca tinha sido uma opção para a Dora –até ela ser obrigada a sair do país.

Dora Téllez: Me desterraron, me cortaron. Pero por mi voluntad no salgo de Nicaragua, pues nadie me va obligar a salir de mi país.

Ana Luiza Albuquerque: No avião para os Estados Unidos também estava Juan Lorenzo Holmann, editor do jornal La Prensa, o maior do país. Ele tinha sido preso em agosto de 2021, acusado de lavagem de dinheiro. Naquele mesmo mês, o La Prensa anunciou que deixaria de circular porque o regime estava retendo o papel importado, necessário para imprimir o jornal. Eles disseram que o material estava parado na alfândega tinha mais de 6 meses.

Jornalistas e empresários de outros veículos de comunicação também foram presos e ameaçados. Em agosto de 2022, o La Prensa teve que retirar da Nicarágua todos os empregados. Assim como políticos, ativistas e funcionários de ONGs, muitos repórteres tiveram que se exilar.

Entre os seis países que foram tema desse podcast até aqui, a Nicarágua foi o único em que eu não pude entrar, porque seria arriscado demais. Por isso eu fui para a Costa Rica, vizinha dali. Em San José, onde eu encontrei a Dona Martha, ativistas exilados vêm se organizando, principalmente com a escalada da repressão pós-2018. Uma das ONGs mais ativas por lá é o Coletivo de Direitos Humanos Nicarágua Nunca +.

Eles trabalham numa casa, numa cidade perto da capital. Nas paredes da sala têm várias imagens dos protestos de 2018. Daí tem um corredor com um painel de fotos das pessoas que foram presas naquela época. É uma espécie de memorial, uma tentativa de documentar o que aconteceu.

No fundo do corredor tem um quintal, com outro painel com imagens dos jovens assassinados. E à direita tem uma casinha verde com uma porta preta e um cadeado. Ali é uma réplica em tamanho real de uma das celas do Chipote. Um funcionário da ONG, chamado Braulio Abarca, foi descrevendo o lugar.

Braulio Abarca: Donde observamos que las dimensiones son sumamente pequeñas, de aproximadamente metro y medio por metro y medio, no tiene un servicio higiénico digno.

Ana Luiza Albuquerque: A cela é bem pequena, com pouco mais de 2m². Tem um beliche de um lado e do outro, no chão, um buraco que serve de banheiro.

Braulio Abarca: Y muchas de estas personas están totalmente en oscuridad.

Ana Luiza Albuquerque: Segundo o Braulio, em El Chipote às vezes só tem água por uma hora no dia. Ele disse que em muitas das celas não tem nenhuma luz, o que causa problemas de visão nos presos. E, em outras, tem luz o tempo todo, o que dificulta o sono.

Braulio Abarca: Realmente dá terror estar aquí metido sin poder tener acceso a ningún tipo de garantía mínima.

Ana Luiza Albuquerque: O coletivo trabalha documentando as violações de direitos humanos e dando acompanhamento legal e psicossocial às vítimas do regime.

Carlos Alberto Hernández, que trabalha no núcleo de documentação, era professor de direitos humanos na Nicarágua. Ele sofreu ameaças diretas e se mudou para a Costa Rica em 2018, quando ainda não tinha tantas organizações para receber e ajudar os exilados. No ano seguinte, alguns colegas advogados criaram o coletivo e ele se juntou ao grupo.

O Carlos me disse que a situação dos exilados é preocupante na Costa Rica. Segundo ele, os imigrantes não conseguiram se radicar, ou seja, encontrar uma casa, trabalho, comida, atendimento à saúde. Construir uma vida estável.

Carlos Hernández: Eso le permitiría a una persona buscar cómo superar sus traumas.

Ana Luiza Albuquerque: Segundo o Carlos, os imigrantes têm dificuldade para conseguir trabalho e por isso se mudam de casa constantemente. Isso prejudica as crianças, porque os pais precisam mostrar que têm um endereço fixo para que elas possam ir à escola, onde também são alimentadas.

Carlos Hernández: Es una situación humanitaria bastante difícil y en donde nos estamos enfrentando a lo que se llama la exclusión.

Ana Luiza Albuquerque: Ele também lembrou que a situação econômica da Costa Rica não é favorável para os imigrantes. Eu achei tudo muito caro na capital, até itens básicos de mercado, e já tinha me perguntado como que os nicaraguenses faziam para se manter ali.

No fim de 2022, o governo do presidente Rodrigo Chaves, com poucos meses no cargo, endureceu as políticas de regularização dos imigrantes. O país vive uma crise migratória, não só pelo intenso fluxo de nicaraguenses, mas também por ser rota de passagem para latino-americanos que querem chegar aos Estados Unidos.

O Carlos disse que o governo passou a exigir uma série de burocracias para os solicitantes de refúgio. Também reduziu para 50 o número de senhas oferecidas por dia na secretaria de migração. No começo de 2023, longas filas de imigrantes, especialmente nicaraguenses, se formavam em frente ao prédio durante a madrugada. Eles dormiam na rua com a esperança de conseguirem uma senha e serem atendidos.

Naquela época, o presidente Rodrigo Chaves disse que nicaraguenses com dificuldades econômicas estavam se aproveitando do refúgio político para se mudar para a Costa Rica e que isso não seria mais tolerado. Ele também falou que esse fluxo de pessoas estava sobrecarregando o país.

Rodrigo Chaves: Somos un país de brazos abiertos, pero se nos está haciendo demasiada carga.

Ana Luiza Albuquerque: Em meio a essa crise migratória, começaram a rolar alguns protestos xenófobos, com pessoas carregando bandeiras da Costa Rica e gritando "fora, nicas" –como são chamados, de forma pejorativa, os nicaraguenses. Um estudo da ONU identificou mais de 230 mil mensagens xenófobas nas redes sociais do país entre maio de 2022 e maio de 2023.

O Carlos disse que o sofrimento dos nicaraguenses no exílio não é uma situação política, mas humanitária. E que esse é um problema regional. Ele questionou por que outros países seguem tendo relações com a Nicarágua e eu sabia que a conversa chegaria no presidente Lula.

Carlos Hernández: Lamentablemente, verdad? Países como Brasil, que en algún momento intentó decir que en Nicaragua no había una dictadura.

Ana Luiza Albuquerque: O Carlos falou que sob Lula o Brasil tentou negar a ditadura do Ortega e que o petista não quis conhecer a realidade nicaraguense, ainda que os diplomatas do governo saibam muito bem o que acontece no país.

Carlos Hernández: La política del señor Lula, que intentó desconocer la realidad nicaraguense, a pesar que sus funcionarios están muy bien documentados de lo que ha vivido Nicaragua.

Ana Luiza Albuquerque: A primeira vez que o Lula se posicionou criticamente em relação ao Ortega foi em agosto de 2021, em uma entrevista ao Canal Once, uma TV mexicana. Ele ainda se preparava para concorrer de novo à Presidência.

Lula: Faz 10 anos que eu não tenho contato com a Nicarágua, não sei o que está acontecendo na Nicarágua, mas tenho informações que as coisas não andam bem por lá. Se eu pudesse dar um conselho ao Daniel Ortega, dou um conselho a ele e a qualquer outro presidente: não abram mão da democracia.

Ana Luiza Albuquerque: Três meses depois, o PT divulgou uma nota reconhecendo e saudando as eleições de fachada daquele ano na Nicarágua. O texto dizia que o pleito foi "uma grande manifestação popular e democrática" e que o resultado, a vitória do Ortega, confirmava o apoio a um projeto político que tenta construir um país socialmente justo e igualitário. Ativistas nicaraguenses que vivem no Brasil enviaram uma carta ao Lula e à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, manifestando "surpresa, frustração e indignação" com o posicionamento.

Algumas semanas depois, Lula também foi criticado por uma fala em entrevista ao jornal espanhol El País. Ele voltou a dizer que é a favor da alternância no poder, mas relativizou a ditadura de Ortega fazendo uma comparação com a Alemanha.

Lula: Eu posso ser contra, mas eu não posso ficar interferindo nas decisões de um povo. Nós temos que defender a autodeterminação dos povos. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não?

Ana Luiza Albuquerque: Lula tenta se distanciar do Ortega, mas tem sido cobrado a fazer uma crítica mais dura contra o antigo companheiro. Ele esteve na Nicarágua quando era líder sindical, em 1980, no primeiro aniversário da Revolução Sandinista. E voltou ao país em 2007, como presidente, quando Ortega já estava no poder. A proximidade entre os dois foi uma fraqueza explorada por adversários nas eleições de 2022.

Jair Bolsonaro: Vamos falar dos seus amigos, Daniel Ortega. Ortega, é seu amigo ou não é? É seu amigo o Ortega?

Ana Luiza Albuquerque: Em junho do ano passado, o governo brasileiro endossou uma resolução da Organização dos Estados Americanos que pedia democracia na Nicarágua. Mas, mais uma vez, o governo Lula foi acusado por dissidentes de suavizar as críticas a Ortega. Isso porque o Brasil pediu alterações no texto. Por exemplo, mudar a proposta inicial, que pedia o retorno da democracia no país, por um pedido de "fortalecimento da democracia". Integrantes do governo brasileiro disseram que o objetivo era manifestar preocupação com a situação, sem fechar as portas para o diálogo.

O Carlos Alberto Hernández, da ONG Nicarágua Nunca +, disse que Ortega já deixou claro que não está disposto a nenhum diálogo.

Carlos Hernández: Cuál es el diálogo que pretende? Seguir encarcelando a sacerdotes, asesinando a estudiantes?

Ana Luiza Albuquerque: Para ele, a política de não intervenção é um pretexto para outros países não se envolverem na crise. E uma ditadura está sendo imposta aos nicaraguenses, que precisam de ajuda externa.

Carlos Hernández: Nos están imponiendo a los nicaraguenses una dictadura que ellos no quieren tratar.

Ana Luiza Albuquerque: O Carlos falou que ficou decepcionado com a postura de Lula e que tinha esperança que o presidente brasileiro fosse mais contundente contra a ditadura, como fizeram outros líderes da esquerda latino-americana, como Gabriel Boric, presidente do Chile.

Carlos Hernández: El señor Lula no sé qué tipo de intereses tendrá de por qué no lo pueda o no lo quiera hacer.

Ana Luiza Albuquerque: Ortega é o único líder de esquerda de que falamos nesse podcast. Mas a orientação ideológica não muda as táticas usadas pra controlar a população. Assim como os autoritários de direita, Ortega silenciou a mídia, as universidades, os ativistas e a oposição pra garantir que continuaria no poder. A diferença é que, no caso da Nicarágua, e também da Venezuela comandada pelo ditador Nicolás Maduro, esse processo tá bem mais avançado.

Os nicaraguenses com quem eu conversei não são nada otimistas sobre a possibilidade de derrubada da ditadura –pelo menos a curto ou médio prazo. E é fácil entender o porquê. Ortega construiu um Estado altamente controlador e repressivo, que não permite a existência da oposição. Não tem expectativa de eleições livres e justas enquanto ele e a mulher estiverem no poder. E mesmo a oposição que está fora da Nicarágua é bastante fragmentada –não tem um líder natural que possa unir os opositores.

Mas eles começaram a dar alguns passos. Um deles foi a criação do grupo Monteverde, que tem juntado gente da esquerda à direita para se organizar contra a ditadura. O grupo tem esse nome porque a primeira reunião, em 2021, foi na cidade de Monteverde, na Costa Rica. Mas foi só no ano passado que ele veio a público.

A ativista Alexa Zamora, que falou no primeiro episódio do podcast, é uma das integrantes do Monteverde. Ela disse que o grupo foi criado com o objetivo principal de unir a oposição.

Alexa Zamora: El primer objetivo es con el que surgió, como te comenté, aglutinar al remanente de la oposición.

Ana Luiza Albuquerque: O segundo objetivo foi promover o diálogo e pensar em ações contra a ditadura, especialmente junto à comunidade internacional, como campanhas de liberação dos presos políticos.

Alexa Zamora: Por ejemplo, todas estas campañas de liberación de presos políticos que hubo.

Ana Luiza Albuquerque: E, se o diálogo funcionar, o próximo passo é fazer acordos políticos para consolidar uma alternativa ao poder do Ortega, que represente ao menos boa parte da oposição.

Mas a curto prazo a Alexa não vê saída. Ela disse que um dos fatores que tornam difícil a queda do Ortega é a configuração do que ela chama de geopolítica do autoritarismo. A Alexa se preocupa com a formação de um bloco mundial autoritário, que ajude a blindar autocratas de eventuais sanções de países e blocos democráticos. Para ela, não é por acaso que o governo nicaraguense mantém boas relações com a Rússia e a Coreia do Norte.

Alexa Zamora: No es casualidad que Ortega tenga relaciones diplomáticas estables con Corea del Norte. No es casualidad que Rusia tenga un acuerdo militar para la construcción de una base en Nicaragua.

Ana Luiza Albuquerque: O professor e historiador Fred Maciel reforçou que Ortega tem se vinculado cada vez mais a regimes de cunho autoritário.

Fred Maciel: Então isso acabou sendo uma saída por parte do Ortega para se manter ou para sobreviver economicamente, principalmente.

Ana Luiza Albuquerque: E esse movimento independe de orientação ideológica: se dá com Cuba e Venezuela, mas também com a Rússia. Com Moscou, a Nicarágua tem vários acordos bilaterais, inclusive um de cooperação para o uso pacífico de energia nuclear.

Ortega foi um dos poucos mandatários que apoiaram o presidente Vladimir Putin na guerra contra a Ucrânia. Ele chegou a se referir a Volodimir Zelenski, presidente ucraniano, como fascista e nazista.

Daniel Ortega: Al fascista, el nazi, presidente de Ucrânia.

Ana Luiza Albuquerque: A Alexa disse que a aproximação de Ortega com outros autocratas não é um ato desesperado para evitar o isolamento, mas sim parte da consolidação de um bloco, que pode ser uma resistência contra organismos democráticos.

Alexa Zamora: La comunidad internacional siento yo que no ha dimensionado el paralelo que esto puede hacer en contra de organizaciones que tienen como base la defensa de la democracia.

Ana Luiza Albuquerque: Um outro ponto importante que dificulta a retomada da democracia na Nicarágua é o papel da esposa de Ortega, Rosario Murillo.

Daniel Ortega: Ella ejerce funciones de presidenta de la república de este país.

Ana Luiza Albuquerque: Com a participação ativa da Murillo no governo, lado a lado com Ortega, a família sinaliza que não tem pretensões de deixar o poder.

Fred Maciel: Então, nessa sucessão familiar, ali, nessa sucessão pelo poder, a própria Rosario Murillo seria essa sucessora imediata para se perpetuar essa ideia de um Orteguismo-Murillismo agora. Então, se esse sandinismo for se perpetuar, é através da Rosario Murillo.

A gente tem cada vez mais se consolidando uma possibilidade de uma dinastia familiar. Então, do ponto de vista político, prático, imediato, é muito difícil se pensar numa saída do Daniel Ortega.

Ana Luiza Albuquerque: A sucessão familiar é uma possibilidade, mas a história recente indica que ela pode fracassar. A base de dados da cientista política americana Erica Frantz, referência no estudo do autoritarismo, mostra que as ditaduras personalistas são frágeis diante da troca do líder. É diferente do que acontece com ditaduras como a do partido comunista chinês, que têm algum mecanismo de divisão do poder e por isso conseguem ser mais estáveis.

De 1946 a 2014, 71% dos regimes centrados em um líder caíram quando ele caiu. A Frantz diz que, como nesse tipo de ditadura as instituições são vazias, acaba faltando uma estrutura que permita a sucessão.

Mas quando um regime cai, no lugar dele não nasce necessariamente uma democracia. Às vezes, um outro grupo autoritário chega ao poder. Os dados são ainda mais desanimadores quando a gente olha para a queda das ditaduras personalistas. Em 60% das vezes, elas são substituídas por um novo regime autoritário.

É por isso que é tão importante alertar para os primeiros sinais de que uma democracia corre perigo. Foi isso que guiou esse podcast, que contou a história de líderes autoritários em seis países e das pessoas afetadas pela crise democrática. Se a gente não aproveita a chance de reagir, logo no começo, depois pode ser tarde demais.

Ana Luiza Albuquerque: Eu sou Ana Luiza Albuquerque, responsável pela apresentação, roteiro, produção e reportagem do Autoritários.

A edição de som é do Raphael Concli. A coordenação é da Magê Flores e do Daniel Castro, a produção no roteiro é do Victor Lacombe e a supervisão dele é do Gustavo Simon. A identidade visual é da Catarina Pignato.

Esse episódio usou áudios de Globonews, Reagan Library, CNN Brasil, TV Cultura, Voz de America, 100% Noticias, TV Globo, El 19 Digital, El País, DW Español, Canal Once, AFP e Canal 6.

A série chegou ao fim, mas a gente se encontra de novo num episódio extra em breve. Mais uma vez, obrigada a você que acompanhou o podcast até aqui.

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