Diretor citado em propina autorizou R$ 1,6 bilhão para Covaxin apesar de série de pendências

Autorização do gasto foi dada por Roberto Dias, apontado como responsável por pressionar pela liberação das vacinas; Saúde suspendeu contrato

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Brasília

O diretor do Ministério da Saúde demitido após relato de que fez pedido de propina foi o responsável por aprovar e autorizar a reserva de R$ 1,61 bilhão para o pagamento pela vacina indiana Covaxin.

Roberto Ferreira Dias destravou o dinheiro em 22 de fevereiro deste ano, em um momento em que faltavam documentos básicos para o negócio, como contrato e regularidade fiscal na Índia.

Dias ocupou o cargo de diretor do Departamento de Logística em Saúde desde o início do governo Jair Bolsonaro (sem partido). Ele chegou à função em 8 de janeiro de 2019, por indicação atribuída ao deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara. O congressista nega.

A exoneração de Roberto Dias do cargo de diretor do Departamento de Logística em Saúde foi publicada nesta quarta (30) no Diário Oficial
A exoneração de Roberto Dias do cargo de diretor do Departamento de Logística em Saúde foi publicada nesta quarta (30) no Diário Oficial - Marcello Casal Jr - 8.abr.20/Agência Brasil

O representante de uma vendedora de vacinas afirmou em entrevista à Folha na última terça-feira (29) que recebeu pedido de propina de US$ 1 por dose em troca de fechar contrato com o Ministério da Saúde.

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante da empresa Davati Medical Supply, disse que Dias cobrou a propina em um jantar no restaurante Vasto, no Brasília Shopping, região central da capital federal, no dia 25 de fevereiro.

Dias foi exonerado do cargo. A demissão foi publicada no Diário Oficial da União desta quarta-feira (30).

Ele mesmo foi citado pelo servidor Luis Ricardo Miranda, chefe de importação no ministério, como um dos responsáveis pela pressão atípica para liberar a Covaxin.

Dias nega tanto ter pedido propina por vacinas quanto ter feito pressão indevida sobre o servidor da Saúde.

Irmão do servidor, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) afirmou à Folha que era Dias que dava as cartas dentro do ministério. "Nada ali acontece se o Roberto não quiser", disse.

Novos documentos obtidos pela reportagem mostram que foi o então diretor do Departamento de Logística o responsável por garantir a reserva de R$ 1,61 bilhão para pagar por 20 milhões de doses da vacina Covaxin, antes mesmo da assinatura do contrato e com pendências básicas no curso da negociação.

Um despacho de Dias, às 18h57 de 22 de fevereiro, confirmou a dispensa de licitação para a contratação da empresa indiana Bharat Biotech, com representação no Brasil feita pela Precisa Medicamentos, que assina o contrato.

O mesmo despacho autorizou a emissão da nota de empenho "em favor da Bharat Biotech, representada pela empresa Precisa".

A nota de empenho é a autorização do gasto. O documento reservou o valor integral previsto em contrato, R$ 1,61 bilhão, dinheiro que não pode ser usado com outra finalidade.

Dias também assinou o documento com aprovação da nota de empenho, no mesmo dia 22 de fevereiro. O despacho referente à aprovação encaminhou a nota para assinatura pelo ordenador de despesas no Ministério da Saúde.

O Departamento de Logística em Saúde (a sigla é DLOG) aparece como emissor da nota de empenho, incluída no sistema às 17h41 de 22 de fevereiro. A favorecida, conforme o documento, é a Precisa Medicamentos.

Enquanto a reserva do dinheiro era providenciada, representantes da empresa eram comunicados sobre pendências básicas para a assinatura do contrato.

Não havia no processo, naquele momento, documento que comprovasse a regularidade fiscal da Bharat Biotech na Índia. Nem mesmo o documento equivalente ao CNPJ havia sido providenciado, segundo um aviso da área técnica do ministério à Precisa.

Outras pendências listadas, no começo da noite de 22 de fevereiro, eram a tradução juramentada desses documentos, o contrato social em vigor, o vínculo entre Bharat Biotech e Precisa Medicamentos, a procuração da Bharat para diretores da Precisa e a declaração de inexistência de fatos impeditivos.

O contrato foi assinado em 25 de fevereiro. Dias assinou como um dos representantes do Ministério da Saúde. Diante das suspeitas que recaem sobre a contratação, o governo Bolsonaro decidiu suspender o contrato. A decisão foi anunciada nesta terça.

No mesmo dia, após a Folha publicar a revelação de cobrança de propina, o ministério comunicou a demissão de Dias da direção do Departamento de Logística em Saúde. Depois da suspensão do contrato, o governo avalia anulá-lo, no momento em que avançam as investigações sobre possíveis irregularidades.

A CPI da Covid aprovou a convocação para depoimento de todos os atores envolvidos nessas suspeitas. Entre eles estão Dias, Barros e Dominguetti.

A oitiva do dono da Precisa, Francisco Emerson Maximiano, estava marcada para esta quinta-feira (1º), mas foi adiada e não tem nova data para ocorrer depois que o empresário obteve habeas corpus no STF (Supremo Tribunal Federal) para ficar em silêncio.

Em nota, a Precisa afirmou que foi transparente e seguiu a legislação ao negociar a Covaxin. Ela negou ter existido qualquer vantagem ou favorecimento.

"A Precisa informa que as tratativas entre a empresa e o Ministério da Saúde seguiram todos os caminhos formais e foram realizadas de forma transparente junto aos departamentos responsáveis do órgão federal."

A Folha revelou no dia 18 de junho a existência e o teor do depoimento dado ao MPF (Ministério Público Federal) pelo servidor da Saúde Luis Ricardo Miranda.

Ele apontou pressão para garantir a importação de doses, apesar da falta de documentos básicos e de erros em faturas, com previsão não contratual de pagamento antecipado de US$ 45 milhões.

O caso da Covaxin cresceu, passou a ser o foco principal da CPI da Covid no Senado e deixou acuado o governo Bolsonaro.

Miranda foi ouvido pela CPI uma semana depois, com seu irmão, Luis Miranda. O servidor confirmou os mesmos termos do depoimento ao MPF. O congressista afirmou ter levado ao presidente da República as informações sobre o que ocorria na contratação da Precisa Medicamentos.

Segundo o deputado, Bolsonaro disse que comunicaria a Polícia Federal sobre as suspeitas que havia escutado. Na mesma conversa, ainda segundo o congressista, o presidente disse que seu líder na Câmara, deputado Ricardo Barros, estaria por trás das suspeitas.

O presidente não acionou a PF, e a oposição acusou o chefe do Executivo, no Supremo, de prevaricação.

​CRONOLOGIA DO CASO COVAXIN APÓS A REVELAÇÃO PELA FOLHA

Reportagem aponta pressão atípica (18.jun)
Em depoimento mantido em sigilo pelo MPF (Ministério Público Federal) e obtido pela Folha, Luís Ricardo Fernandes Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, afirmou ter sofrido pressão de forma atípica para tentar garantir a importação da vacina indiana Covaxin

'É bem mais grave' (22.jun)
Irmão do servidor do Ministério da Saúde, o deputado federal Luís Miranda (DEM-DF) disse à Folha que o caso é "bem mais grave" do que a pressão para fechar o contrato

Menção a Bolsonaro (23.jun)
Luis Miranda afirmou ter alertado o presidente sobre os indícios de irregularidade. "No dia 20 de março fui pessoalmente, com o servidor da Saúde que é meu irmão, e levamos toda a documentação para ele"

CPI aprova depoimentos (23.jun)
Os senadores da comissão aprovaram requerimento de convite para que o servidor Luís Ricardo Miranda preste depoimento. A oitiva será nesta sexta-feira (25) e o deputado Luis Miranda também será ouvido.
Os parlamentares também aprovaram requerimento de convocação (modelo no qual a presença é obrigatória) do tenente-coronel Alex Lial Marinho, que seria um dos autores da pressão em benefício da Covaxin. A CPI também decidiu pela quebra de sigilo bancário, fiscal, telefônico e telemático de Lial Marinho

Denúncia grave (23.jun)
Presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM) afirmou que as denúncias de pressão e a possibilidade de que o presidente Jair Bolsonaro tenha tido conhecimento da situação talvez seja a denúncia mais grave recebida até aqui pela comissão

Bolsonaro manda PF investigar servidor e deputado (23.jun)
O presidente mandou a Polícia Federal investigar o deputado Luis Miranda e o irmão dele, Luis Ricardo Fernandes Miranda. O ministro da Secretaria-Geral, Onyx Lorenzoni, e Elcio Franco, assessor especial da Casa Civil e ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, foram escalados para fazer a defesa do presidente. Elcio é um dos 14 investigados pela CPI

Empresa diz que preço para Brasil segue tabela (23.jun)
A Precisa Medicamentos, representante no Brasil do laboratório indiano Bharat Biotech, afirmou que o preço de US$ 15 por dose da vacina oferecido ao governo segue tabela mundial e é o mesmo praticado com outros 13 países

Governistas dizem que Bolsonaro repassou suspeitas a Pazuello (24.jun)
Senadores governistas da CPI afirmaram que o presidente pediu que Pazuello verificasse as denúncias envolvendo a compra da Covaxin assim que teve contato com os indícios

'Acusação é arma que sobra' (24.jun)
Bolsonaro fustigou integrantes da CPI, repetiu que não há suspeitas de corrupção em seu governo e afirmou que a acusação sobre a vacina é a arma que sobra aos seus opositores. "Me acusam de quase tudo, até de comprar uma vacina que não chegou no Brasil. A acusação é a arma que sobra", disse o presidente na cidade de Pau de Ferros, no Rio Grande do Norte

'Foi o Ricardo Barros que o presidente falou' (25.jun)
Em depoimento à CPI da Covid, o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF), que é irmão do servidor do Ministério da Saúde Luis Ricardo Miranda, afirmou ter alertado Bolsonaro. “A senhora também sabe que foi o Ricardo Barros que o presidente falou", disse o parlamentar à senadora Simone Tebet (MDB-MS). Segundo ele, Bolsonaro afirmou: "Vocês sabem quem é, né? Sabem que ali é foda. Se eu mexo nisso aí, você já viu a merda que vai dar, né? Isso é fulano. Vocês sabem que é fulano"

Governo suspende contrato com a Covaxin (29.jun)
Três meses depois da data em que os irmãos Miranda teriam alertado o presidente sobre possíveis irregularidades, o Ministério da Saúde decidiu suspender o contrato com a Precisa Medicamentos para obter 20 milhões de doses da Covaxin. Segundo membros da pasta, a decisão foi pela suspensão até que haja novo parecer sobre o caso. A pasta, porém, já avalia a possibilidade de cancelar o contrato.

Abertura de inquérito pela Polícia Federal (30.jun)
A Polícia Federal instaurou um inquérito para investigar a compra da vacina Covaxin pelo governo de Jair Bolsonaro, após pedido de abertura da investigação pelo ministro da Justiça, Anderson Torres. O caso será conduzido pelo Sinq (Serviço de Inquéritos) da Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da PF.

MPF instauração procedimento de investigação (30.jun)
O MPF (Ministério Público Federal) instaurou um procedimento investigatório criminal, conhecido internamente pela sigla PIC, para apurar as suspeitas de crime no contrato para compra da Covaxin. O procedimento foi aberto pela Procuradoria da República no Distrito Federal, que considerou suspeita a existência de muitos atos para a efetivação do contrato no mesmo dia ou em tempo curto. Uma celeridade contraditória em relação à postura da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que negou em março um pedido de importação.

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