Militares e policiais são incógnita em eventual ruptura após cartas pela democracia

Historiadores e cientistas políticos avaliam que nota da embaixada dos EUA e adesão do PIB são decisivas

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São Paulo

Após a articulação de manifestos pela democracia com adesão significativa do PIB e o posicionamento dos EUA em defesa do sistema de votação brasileiro, cientistas políticos e historiadores avaliam que militares e policiais restam como a principal incógnita em relação ao risco de ruptura institucional no país.

O temor de uma incursão autoritária em caso de derrota de Jair Bolsonaro (PL) está presente desde o início de seu mandato. Cresceu à medida que recrudesceram seus ataques ao sistema eleitoral, com questionamentos infundados às urnas eletrônicas e falas como a de que só deixaria a Presidência morto.

O presidente Jair Bolsonaro junto a apoiadores em ato do 7 de Setembro, em 2021
O presidente Jair Bolsonaro junto a apoiadores em ato do 7 de Setembro, em 2021 - Danilo Verpa - 7.set.21/Folhapress

Para cientistas políticos, o cenário ainda é grave, mas mudou consideravelmente nas últimas três semanas com as manifestações públicas de dois atores que tiveram peso importante no golpe de 1964.

"Não se permanece no poder sem o apoio das elites econômicas, que se manifestam agora, e dos EUA", diz Daniela Campello, professora da FGV e pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.

A "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito" foi aberta ao público no último dia 26 e já tem mais de 750 mil assinaturas, entre as quais as dos banqueiros Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal, copresidentes do Conselho de Administração do Itaú Unibanco, e as de empresários como Fábio Barbosa, da Natura, Horacio Lafer Piva, da Klabin, e Walter Schalka, da Suzano.

O texto cita "ataques infundados e desacompanhados de provas" que questionam o processo eleitoral e convoca a sociedade a ficar alerta "na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições".

Para o cientista político Leonardo Avritzer, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a presença de banqueiros e empresários entre os signatários é a demonstração do primeiro efeito concreto da carta, já que indica o fortalecimento da coalizão pela democracia para além dos grupos já esperados.

Ele também avalia como muito relevante a nota da embaixada dos EUA divulgada um dia após Bolsonaro convidar embaixadores para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro.

Na nota, a representação em Brasília diz que "as eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e pelas instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo".

Para a professora da FGV, a frase é significativa porque, até o momento, o governo de Joe Biden havia emitido sinais dúbios sobre sua reação às ameaças golpistas do presidente brasileiro.

Com o posicionamento claro dos americanos e do PIB nacional, ela e outros analistas avaliam que agora a incógnita é qual seria a postura de militares e policiais em caso de uma eventual derrota de Bolsonaro.

"O terceiro silêncio a ser quebrado, muito preocupante ainda, é o dos militares. Se houvesse uma fala dos três comandantes das Forças Armadas declarando confiança nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral seria a pá de cal que precisamos [para enterrar a ideia de um golpe]", afirma Daniela.

Até o momento, as Forças Armadas têm emitido sinais em diferentes direções. Por um lado, militares se alinharam ao discurso do presidente de desacreditar o sistema de votação em questionamentos ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Além disso, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, esteve presente na reunião em que Bolsonaro proferiu ataques ao sistema eleitoral diante dos embaixadores.

Por outro, em reunião com ministros da Defesa de todo o continente, reafirmou o compromisso do Brasil com a Carta Democrática Interamericana, da Organização dos Estados Americanos, segundo a qual "os povos da América têm direito à democracia, e seus governos, a obrigação de promovê-la e defendê-la".

Para Avritzer, da UFMG, a reação da embaixada dos EUA coloca as Forças Armadas em uma posição complicada dada a tradição de colaboração entre os dois países na área militar.

Além da dificuldade de prever o que farão os militares, outro temor manifestado por pesquisadores ouvidos pela Folha é com a postura das polícias militares no caso de reações violentas a uma eventual derrota do presidente.

"A grande possibilidade que vejo com preocupação é a ocorrência de escaramuças por parte da base bolsonarista mais radicalizada, de atiradores a elementos das polícias estaduais", diz Adriano de Freixo, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF (Universidade Federal Fluminense).

"Se as polícias estaduais não reprimirem eventuais protestos e inclusive os apoiarem, qual será a postura do Exército?"

Na avaliação dele, a carta pela democracia é importante por romper a "bolha progressista" e estimular outros setores, como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de SP), a elaborar manifestos próprios.

O texto articulado pela entidade das indústrias em conjunto com centrais sindicais e outros setores da sociedade civil foi publicado na última sexta-feira (5). Ele reforça o compromisso "com a soberania do povo brasileiro expressa pelo voto" e a independência entre os poderes.

Para Freixo, a aprovação da chamada PEC Kamikaze foi decisiva para a adesão do PIB aos movimentos pró-democracia, ao desfazer ilusões de que Bolsonaro pudesse ter um caráter liberal na economia.

Historiador especialista na ditadura militar e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Carlos Fico também avalia que o principal temor de ruptura institucional hoje está ligado a uma possível vista grossa de polícias militares a episódios de violência política.

Para ele, a carta pela democracia que será lida no próximo dia 11 de agosto na Faculdade de Direito da USP já produziu mais efeitos concretos do que a de 1977, na qual ela se inspirou e que não teve influência significativa na reabertura, que já era conduzida pelos militares.

"É bom que setores que demoram tanto a se posicionar em algum momento se posicionem", diz.

"Teria sido surpreendente, espetacular, que aqueles juristas tivessem se manifestado em 1969, em 1970, em 1971, no auge da repressão, mas isso só aconteceu quando já ocorria a abertura. O mesmo se dá com aqueles que decidiram se posicionar só agora. Mas antes tarde do que nunca."

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