'Governo de destruição', 'frente ampla' e 'submundo das redes'; leia discurso de Lula comentado

Eleito fez série de críticas a Bolsonaro durante cerimônia nesta segunda-feira no TSE

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São Paulo

Em discurso na cerimônia de diplomação como presidente eleito, nesta segunda-feira (12), Luiz Inácio Lula da Silva mencionou o período em que ficou preso em decorrência de sentença na Operação Lava Jato e os dois principais motes de sua vitoriosa campanha eleitoral: a defesa da democracia e o combate à pobreza.

Em 14 minutos de fala, ele fez diversas menções ao governo de Jair Bolsonaro (PL), mas não o citou nominalmente. Leia a íntegra comentada:

Lula chora em discurso na solenidade de diplomação de presidente eleito - Pedro Ladeira - 12.dez.22/Folhapress

"Em primeiro lugar, quero agradecer ao povo brasileiro, pela honra de presidir pela terceira vez o Brasil.

Na minha primeira diplomação, em 2002, lembrei da ousadia do povo brasileiro em conceder –para alguém tantas vezes questionado por não ter diploma universitário– o diploma [de presidente].

Na cerimônia de diplomação em dezembro de 2002, Lula, de improviso, afirmou, muito emocionado: "Se havia alguém no Brasil que duvidava que um torneiro mecânico..., saído de uma fábrica, chegasse à Presidência da República, 2002 provou exatamente o contrário. E eu, que, durante tantas vezes,...fui acusado de não ter um diploma superior, ganho como meu primeiro diploma, o diploma de presidente da República do meu país".

Na ocasião, a cerimônia inteira durou apenas 13 minutos.

Eu quero pedir desculpas para vocês pela emoção. Porque quem passou o que eu passei nestes últimos anos, estar aqui agora é a certeza de que Deus existe. E que o povo brasileiro é maior do que qualquer pessoa que tem tal arbítrio nesse país.

Eu sei o quanto custou, não apenas a mim, quanto custou ao povo brasileiro essa espera para que a gente pudesse reconquistar a democracia nesse país.

Em trecho do discurso em que falou chorando, de improviso, Lula fez referência ao período na prisão, entre 2018 e 2019. Ao fazer cumprimentos na abertura de sua fala, também citou os apoiadores da mobilização chamada de vigília de Curitiba, quando militantes acamparam nas proximidades da sede da Polícia Federal em Paraná, onde ele ficou preso. A prisão durou 580 dias e só foi revogada quando o Supremo Tribunal Federal mudou o entendimento sobre a prisão de réus condenados em segunda instância. Posteriormente, a corte anulou as sentenças contra o petista, o que devolveu seus direitos políticos.

Reafirmo hoje que farei todos os esforços para, juntamente com meu querido companheiro Geraldo Alckmin, cumprir o compromisso que assumi não apenas durante a campanha, mas ao longo de toda uma vida: fazer do Brasil um país mais desenvolvido e mais justo, com a garantia de dignidade e qualidade de vida para todos os brasileiros, sobretudo as pessoas mais necessitadas.

Logo no início do discurso, o presidente se voltou ao principal assunto de suas falas na campanha eleitoral, que foi o combate à pobreza. Um dos motes de sua candidatura era "incluir o pobre no Orçamento", tema sempre permeado com menções ao período de economia aquecida de seus dois mandatos (2003-2010).

Quero dizer que muito mais que a cerimônia de diplomação de um presidente eleito, esta é a celebração da verdadeira democracia.

Poucas vezes na história recente deste país a democracia esteve tão ameaçada.

Poucas vezes na nossa história a vontade popular foi tão colocada à prova, e teve que vencer tantos obstáculos para enfim ser ouvida.

A democracia não nasce por geração espontânea. Ela precisa ser semeada, cultivada, cuidada com muito carinho por cada um, a cada dia, para que a colheita seja generosa para todos.

Mas além de semeada, cultivada e cuidada com muito carinho, a democracia precisa ser todos os dias defendida daqueles que tentam, a qualquer custo, sujeitá-la a seus interesses financeiros e ambições de poder.

Felizmente, não faltou quem defendesse neste momento tão grave a nossa democracia.

Além da sabedoria do povo brasileiro, que escolheu o amor em vez do ódio, a verdade em vez da mentira e a democracia em vez do arbítrio, quero destacar a coragem do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, que enfrentaram toda sorte de ofensas, ameaças e agressões para fazer valer a soberania do voto popular.

Cumprimento cada ministro e cada ministra do STF e do TSE pela firmeza na defesa da democracia e da lisura do processo eleitoral nesses tempos tão difíceis.

A história há de reconhecer sua coerência e fidelidade à Constituição.

As cortes tomaram medidas duras principalmente contra questionamentos ao sistema de votação eletrônico, como o bloqueio de perfis em redes sociais de apoiadores de Bolsonaro.

Nas vésperas do segundo turno, Alexandre de Moraes mandou o Ministério da Defesa entregar seu relatório de fiscalização das urnas, citando a possibilidade de abuso de poder. Os militares haviam decidido fazer auditoria paralela nas urnas, o que levou a críticas sobre instrumentalização das Forças Armadas por Bolsonaro.

Após a campanha, em novembro Moraes determinou que o partido de Bolsonaro, o PL, pagasse multa de R$ 22,9 milhões por ter pedido a anulação de votos de urnas de modelos anteriores a 2020.

Essa não foi uma eleição entre candidatos de partidos políticos com programas distintos. Foi a disputa entre duas visões de mundo e de governo.

De um lado, o projeto de reconstrução do país, com ampla participação popular. De outro lado, um projeto de destruição do país ancorado no poder econômico e numa indústria de mentiras e calúnias jamais vista ao longo de nossa história.

Lula voltou a fazer críticas ao meio empresarial e financeiro, que majoritariamente apoiou a candidatura governista neste ano. Duas semanas depois de vencer a eleição, houve novas rusgas com o mercado, quando o eleito criticou políticas de austeridade e disse que a população é levada a sofrer "para garantir a tal da estabilidade fiscal".

Lula afirmou, na ocasião, que "algumas coisas encaradas como gastos nesse país vão passar a ser vistas como investimentos". Após efeitos na cotação do dólar e na Bolsa, o eleito afirmou na ocasião que o "mercado fica nervoso à toa".

Não foram poucas as tentativas de sufocar a voz do povo e a democracia.

Os inimigos da democracia lançaram dúvidas sobre as urnas eletrônicas, cuja confiabilidade é reconhecida há muito tempo em todo o mundo.

Ameaçaram as instituições. Criaram obstáculos de última hora para que eleitores fossem impedidos de chegar a seus locais de votação.

Lula fez menção a iniciativa da Polícia Rodoviária Federal de promover blitze no domingo do segundo turno, principalmente em estradas do Nordeste, principal base eleitoral do PT. A medida foi interpretada como uma tentativa de impedir eleitores de comparecer às urnas e foi revista horas depois após decisão do Tribunal Superior Eleitoral.

Tentaram comprar o voto dos eleitores, com falsas promessas e dinheiro farto, desviado do orçamento público.

Intimidaram os mais vulneráveis com ameaças de suspensão de benefícios, e os trabalhadores com o risco de demissão sumária, caso contrariassem os interesses de seus empregadores.

Quando se esperava um debate político democrático, a nação foi envenenada com mentiras produzidas no submundo das redes sociais.

Uma das marcas da campanha eleitoral foi uma onda de empresários apoiadores de Bolsonaro agindo para impulsionar sua candidatura entre empregados, em prática ilegal apelidada de assédio eleitoral que foi investigada em diversas partes do país. O Ministério Público do Trabalho chegou a instalar um gabinete de crise em outubro. Houve casos, por exemplo, de cooperativa rural enviando cartas a funcionários pedindo voto no atual presidente e promessas de bônus salarial.

Eles semearam a mentira e o ódio, e o país colheu uma violência política que só se viu nas páginas mais tristes da nossa história.

E no entanto, a democracia venceu.

O resultado destas eleições não foi apenas a vitória de um candidato ou de um partido. Tive o privilégio de ser apoiado por uma frente de 12 partidos no primeiro turno, aos quais se somaram mais dois no segundo turno.

Uma verdadeira frente ampla contra o autoritarismo, que hoje, na transição de governo, se amplia para outras legendas, e fortalece o protagonismo de trabalhadores, empresários, artistas, intelectuais, cientistas e lideranças dos mais diversos e combativos movimentos populares deste país.

Lula tem sido cobrado a abrir mais espaço em seu ministério para aliados de primeira hora. Dos ministros já definidos até agora, o PT irá comandar as pastas da Fazenda e da Casa Civil, cruciais para a gestão. Há resistência no partido em aceitar a senadora Simone Tebet, do MDB, à frente da área do Desenvolvimento Social.

Tenho consciência de que essa frente se formou em torno de um firme compromisso: a defesa da democracia, que é a origem da minha luta e o destino desse país.

Nestas semanas em que o gabinete de transição vem escrutinando a realidade atual do país, tomamos conhecimento do deliberado processo de desmonte das políticas públicas e dos instrumentos de desenvolvimento, levado a cabo por um governo de destruição nacional.

Como mostrou a Folha no último fim de semana, o eleito e sua equipe pretendem alardear à população o que veem como um cenário caótico deixado na administração federal como forma de evitar cobrança por erros da gestão de Jair Bolsonaro.

Documento da equipe de transição vai mostrar dados da situação econômica herdada em diversas áreas e seus impactos.

Soma-se a este legado perverso, que recai principalmente sobre a população mais necessitada, o ataque sistemático às instituições democráticas.

Mas as ameaças à democracia que enfrentamos e ainda haveremos de enfrentar não são características exclusivas de nosso país.

A democracia enfrenta um imenso desafio ao redor do planeta, talvez maior do que no período da Segunda Guerra Mundial.

Na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, os inimigos da democracia se organizam e se movimentam. Usam e abusam dos mecanismos de manipulações e mentiras, disponibilizados por plataformas digitais que atuam de maneira gananciosa e absolutamente irresponsável.

A máquina de ataques à democracia não tem pátria nem fronteiras.

O combate, portanto, precisa se dar nas trincheiras da governança global, por meio de tecnologias avançadas e de uma legislação internacional mais dura e mais eficiente.

Que fique bem claro: jamais renunciaremos à defesa intransigente da liberdade de expressão, mas defenderemos até o fim o livre acesso à informação de qualidade, sem mentiras e manipulações que levam ao ódio e à violência política.

Na campanha eleitoral, Lula disse que é preciso não ter medo de debate sobre o funcionamento das redes sociais. "Vamos tentar discutir qual é o melhor caminho para que você não seja censurado, para que você não confunda uma coisa que você fala que é correta, uma divergência política ou cultural, com uma provocação, uma mentira deslavada."

Ainda em 2021, ele havia dito, em viagem à Europa: "Nós vamos ter que regulamentar as redes sociais. Vamos ter que regulamentar a internet, vamos ter que colocar um parâmetro".

O tema virou motivo de críticas de Bolsonaro, com acusações de intenção de censura. Bolsonaristas costumam mencionar o mote da "liberdade de expressão" para defender sua atuação nas redes.

Nossa missão é fortalecer a democracia –entre nós, no Brasil, e em nossas relações multilaterais.

A importância do Brasil neste cenário global é inegável, e foi por esta razão que os olhos do mundo se voltaram para o nosso processo eleitoral.

Precisamos de instituições fortes e representativas. Precisamos de harmonia entre os Poderes, com um eficiente sistema de pesos e contrapesos que iniba aventuras autoritárias.

Precisamos de coragem.

É necessário tirar uma lição deste período recente em nosso país e dos abusos cometidos no processo eleitoral. Para nunca mais esquecermos. Para que nunca mais isso aconteça.

A equipe de transição já divulgou questionamentos à atuação de Bolsonaro na campanha eleitoral, como supostas irregularidades na inclusão de beneficiários do Auxílio Brasil antes da eleição. O coordenador de grupos técnicos da transição, Aloizio Mercadante, disse na semana passada que a intenção é acionar o atual presidente em diversas instâncias e órgãos de fiscalização, como Ministério Público, Tribunal de Contas da União e Controladoria-Geral da União.

"O processo pode gerar inclusive inelegibilidade de algumas autoridades públicas se comprovar que elas tinham relação direta ou tinham fim eleitoreiro", afirmou a senadora Simone Tebet.

Bolsonaro pode responder na Justiça também pela rede de fake news ligada a seus aliados, que esteve sob análise da Justiça Eleitoral.

Democracia, por definição, é o governo do povo, por meio da eleição de seus representantes. Mas precisamos ir além dos dicionários. O povo quer mais do que simplesmente eleger seus representantes, o povo quer participação ativa nas decisões de governo.

É preciso entender que democracia é muito mais do que o direito de se manifestar livremente contra a fome, o desemprego, a falta de saúde, educação, segurança, moradia. Democracia é ter alimentação de qualidade, é ter emprego, saúde, educação, segurança, moradia.

Quanto maior a participação popular, maior o entendimento da necessidade de defender a democracia daqueles que se valem dela como atalho para chegar ao poder e instaurar o autoritarismo.

A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual.

É com o compromisso de construir um verdadeiro Estado democrático, garantir a normalidade institucional e lutar contra todas as formas de injustiça, que recebo pela terceira vez o diploma de presidente eleito do Brasil –em nome da liberdade, da dignidade e da felicidade do povo brasileiro.

Muito obrigado.

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