Antipolítica marca ciclo que liga junho de 2013 a ação golpista de 8 de janeiro

Especialistas debatem semelhanças e diferenças entre os dois eventos

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São Paulo

Com cerca de 10 metros de extensão cada uma, duas faixas de tecido amarelo vivo se destacavam em meio aos milhares de cartazes que ocuparam a avenida Paulista no dia 20 de junho de 2013.

A primeira, trivial, exigia reforma tributária, uma das inúmeras demandas daquelas jornadas. A segunda não pleiteava nada; trazia apenas uma afirmação em letras pretas: "Meu partido é meu país".

Embora as cinco palavras expressassem um sentimento antipolítica comum a muitos manifestantes, elas pareciam, naquele momento, fadadas à insignificância histórica.

A rejeição aos canais institucionais tradicionais, contudo, ganhou força nos anos que se seguiram. Uma década depois, atingiu seu provável ápice com o ataque golpista à praça dos Três Poderes, em Brasília, no último dia 8 de janeiro.

Multidão na avenida Paulista; no centro, duas faixas amarelas, onde se lê demanda por reforma tributária e a frase "meu partido é meu país"
Manifestação na avenida Paulista no dia 20 de junho de 2013 - Avener Prado/Folhapress - 20.jun.2013

"Esses dois eventos talvez marquem um começo e fim de ciclo", diz o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).

"Junho de 2013 foi o momento em que se abriram no Brasil as comportas da antipolítica no sentido mais forte", diz Couto, que mantém no YouTube o canal Fora da Política Não Há Salvação".

De acordo com ele, a negação da política como um todo e dos partidos em particular implica a recusa do pluralismo, já que esses são os instrumentos de diálogo na democracia representativa.

Ao movimento de 2013 seguiram-se as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) e a eleição de Jair Bolsonaro (PL) em 2018, ambas animadas pelas investigações da Operação Lava Jato.

"A Lava Jato tem um discurso antipolítica muito forte", afirma Couto. "Esse ambiente começou a ser produzido em junho de 2013 e abriu espaço para a direita radical. O canto de cisne foi em janeiro de 2023. Acho que o ciclo da antipolítica se encerrou ali. Pelo menos é o que espero", diz.

Não só a antipolítica aproxima os episódios. Para a socióloga Angela Alonso, colunista da Folha, é possível identificar outras semelhanças, como a ausência de coordenação centralizada, o recurso à violência e o propósito de chegar à sede dos Poderes. Mas há diferenças importantes.

"Em junho, não se falava em tomar o poder propriamente dito, ninguém tinha discurso golpista", diz Alonso, que é professora da USP, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autora do recém-lançado "Treze - A Política de Rua de Lula a Dilma" (Companhia das Letras).

Além disso, as forças repressivas agiram de modo diferente. "Em 2013, as portas estavam trancadas e muito bem policiadas. Em 2023, teve facilitação do acesso", afirma a socióloga.

No ano passado, ela e o jornalista Paulo Markun lançaram a série "Junho 2013 - O Começo do Avesso" e o documentário "Ecos de Junho", nos quais procuram mostrar conexões entre as jornadas de dez anos atrás e a ascensão da direita mais radicalizada no Brasil.

Alonso argumenta que, entre os diversos grupos que foram às ruas em junho de 2013 estava o que ela chama de um "grande campo patriota", que usava símbolos nacionais e incluía quem luta por menos impostos e menos políticas redistributivas, contra o aborto e contra a corrupção.

"Quem levou mais gente no começo de junho é a pauta da moralidade. Depois fica difícil fazer a divisão, porque são muitos organizadores e muitas agendas", afirma a socióloga.

Para ela, essas lideranças de direita ficaram mobilizadas em 2015 e 2016 em torno do impeachment; depois, dando apoio eleitoral a Bolsonaro, de quem uma parcela se tornou fã de carteirinha.

"É de uma franja pequena do campo patriota que vieram os invasores de 8 de janeiro. São pessoas que compartilham os mesmos valores, que se consideram ameaçadas pela esquerda e se sentem protegidas por si mesmas, com suas armas", afirma.

Rosemary Segurado, que é professora de ciências sociais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), também aponta junho de 2013 como uma janela de oportunidade para a emergência de lideranças de extrema direita.

"Surgiram, no bojo daquele processo, grupos que encarnaram uma pauta ultraconservadora —não é nem conservadora, é reacionária, porque defende até aspectos pré-civilizatórios", diz Segurado, coautora do livro "Lideranças Políticas no Brasil: Características e Questões Institucionais" (Educ, 2022).

A consolidação desse grupo no cenário político, diz ela, levou à eleição não só de Bolsonaro em 2018 mas também de deputados e senadores sem nenhum compromisso com a democracia.

"A direita tradicional foi engolida por esse tipo de liderança que, ao longo de 2022, foi criando um ambiente propício para que o 8 de janeiro acontecesse. Queriam um golpe, mas não conseguiram", afirma Segurado.

Na contramão dessas aproximações, o cientista social Jonas Marcondes Sarubi de Medeiros diz ver descontinuidades gritantes entre junho de 2013 e 8 de janeiro de 2023.

Ele afirma, por exemplo, que pesquisas mostraram perfis sociodemográficos e político-ideológicos muito distintos entre as pessoas que foram às ruas dez anos atrás, as que se manifestaram pelo impeachment e as que apoiaram Bolsonaro.

Embora não exista nenhum levantamento comparável em relação à ação golpista deste ano, Medeiros diz que os dados dos processos na Justiça reforçam a ideia das diferenças.

Pesquisador do Cebrap e coautor do livro "The Bolsonaro Paradox" (2021, Springer), Medeiros estudou o universo simbólico dos patriotas de 30 de outubro de 2022 a 8 de janeiro. "Também não vejo nenhuma continuidade com junho de 2013. São imaginários distintos", diz.

"Em junho, havia uma demanda para democratizar a democracia, para aprofundar os valores da Constituição de 1988. No caso dos patriotas, as pessoas se mobilizam para subverter, abolir a Constituição, num sentimento de nostalgia da ditadura", afirma.

Medeiros também sustenta que nem no sentimento antipolítica os momentos se comparam. "A questão é o parâmetro de política. Se é a política institucional, toda antipolítica é igual", diz.

"Em junho de 2013, havia uma luta política por vias não institucionais, uma politização alternativa. Em 2023, era uma campanha golpista, com a deslegitimação anterior de Justiça Eleitoral."

Para Medeiros, embora seja possível identificar um ciclo de protestos na última década, é importante combater as causalidades lineares nas interpretações, como se estivesse escrito em pedra que, dado junho de 2013, Bolsonaro seria eleito. "Foi um processo político cheio de contingências", diz.

As contingências —coisas que podem acontecer ou não— também chamam a atenção de Rodrigo Nunes, professor de filosofia da Universidade de Essex (Inglaterra) e autor do livro "Nem Vertical Nem Horizontal" (Ubu), a ser lançado no dia 13.

"Alguns dizem que junho de 2013 é o bolsonarismo em germe, como se tudo que veio depois estivesse contido naquelas jornadas. Outros dizem que não existe nenhuma conexão entre os dois momentos. Ambas as posições me parecem absurdas", diz.

Para Nunes, houve uma disputa pelo legado daquelas manifestações. "E quem a venceu com folga foi a direita", afirma. "Mas que isso tenha acontecido é contingente. É perfeitamente concebível que junho de 2013 tivesse levado a outra coisa se houvesse resposta melhor do PT, por exemplo."

Para ele, há ainda outra semelhança: "Ambos os momentos se inserem num contexto histórico mais amplo em que temos movimentos de massa sem organizações tradicionais de massa, por força das possibilidades oferecidas pela internet".

Nunes considera que a frustração com a política institucional foi motor dos dois eventos separados por dez anos e que a ocupação dos espaços de poder representou, em ambos os casos, um gesto estético de dessacralização.

"Mas com uma diferença importantíssima de grau. Em 8 de janeiro, a dessacralização vai muito mais longe, com a depredação e o ato extremo de defecar em cima desses espaços."

Erramos: o texto foi alterado

O livro "Lideranças Políticas no Brasil: Características e Questões Institucionais" foi editado pela Educ, não pela Loyola, como afirmou versão anterior deste texto

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