Descrição de chapéu
ataque à democracia

De Bolsonaro a Lula, políticos usam a democracia como arma retórica

Instrumentalização do termo é comum; mais difícil é colocar seus valores em prática

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Ana Luiza Albuquerque
Ana Luiza Albuquerque

Repórter de Política, é mestre em Jornalismo Político pela universidade Columbia (EUA) e autora do podcast Autoritários

Em abril de 2020, pressionado por ter participado de um ato que defendia uma nova intervenção militar no Brasil, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) garantiu que a democracia e a liberdade estavam acima de tudo. Em um arroubo populista, completou: "Eu sou, realmente, a Constituição".

Desde então, foram algumas as ocasiões nas quais Bolsonaro se posicionou como um defensor da democracia. A última delas foi no domingo (21), em manifestação com apoiadores na zona sul do Rio de Janeiro, quando disse que a democracia está sob ameaça e que o que "eles" querem é a ditadura.

O presidente Jair Bolsonaro em manifestação no domingo, na zona sul do Rio de Janeiro - Mauro Pimentel - 21.abr.24/AFP

Na retórica, o ex-presidente instrumentaliza a democracia para reforçar a narrativa de que o ministro do STF Alexandre de Moraes promove a censura. Na prática, Bolsonaro ameaçou a normalidade democrática quando colocou em xeque a confiabilidade das urnas sem provas e quando atacou sucessivamente as demais instituições que compõem o sistema de freios e contrapesos.

E, segundo o tenente-coronel Mauro Cid e os ex-comandantes Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e Carlos Baptista Júnior (Aeronáutica), quando sondou os chefes das Forças Armadas sobre a possibilidade de um golpe.

Do outro lado do espectro ideológico, em visita à China na primeira metade do mês, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, defendeu a "democracia efetiva" do país.

"O Ocidente tem que parar de dar lição de democracia. O que eu vejo aqui, inclusive na organização do partido e da sociedade, é uma democracia e uma participação nos estratos mais baixos da sociedade aos mais altos no desenvolvimento do país", afirmou ela, segundo o jornal O Globo.

Com partido único, repressão aos dissidentes e ausência de eleições livres e de liberdade de imprensa e de associação, a China não seria considerada uma democracia nem segundo as definições mais minimalistas –ainda mais após a ascensão de Xi Jinping e a escalada de seu controle sobre o Partido Comunista.

O presidente Lula (PT) também acumula contradições em relação ao tema. Preso na ditadura militar, o petista usou a defesa da democracia em sua retórica muitas vezes, como para afastar a ameaça autoritária de Bolsonaro e vencer as eleições de 2022 sob um discurso de união ou para condenar os responsáveis pelos atos antidemocráticos do 8 de janeiro de 2023. "Não há perdão para quem atenta contra a democracia", afirmou em discurso no Congresso um ano após os ataques.

Lula resiste, porém, a repreender aliados que sistematicamente corroem a democracia em seus países, como Daniel Ortega, na Nicarágua, e Nicolás Maduro, na Venezuela. "A Venezuela, ela tem mais eleições que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim", afirmou o presidente em entrevista no ano passado.

Como se sabe, a quantidade de eleições ou referendos não é atestado de qualidade democrática. Menos de um ano depois dessa fala, a proximidade das eleições de julho na Venezuela escancarou o que já se observava desde 2018: Maduro não está interessado em eleições livres e competitivas.

Depois de minimizar a problemática do veto à candidatura da opositora María Corina Machado (dizendo que ao ser barrado das eleições de 2018 não ficou chorando e indicou outro candidato), o petista acabou reconhecendo publicamente a gravidade do cenário quando a substituta de Maria Corina, Corina Yoris, também foi impedida de concorrer.

A literatura acadêmica contemporânea sugere que autocratas do século 21 evitam a repressão violenta comum nas ditaduras do século 20 e se voltam para táticas de manipulação menos escancaradas, forjando um verniz democrático que legitime suas práticas e permita a manutenção de suas relações no cenário internacional –especialmente as econômicas.

Com o fim da Guerra Fria, a democracia liberal despontou como sistema político de referência. Mesmo governantes autoritários se apropriam do termo em busca de legitimidade para suas ações, muitas vezes criando e defendendo um significado próprio —e conveniente— sobre o que é ser democrático.

É o caso da China: a fala de Gleisi neste mês é uma reprodução fiel da narrativa do regime, que costuma se vender como uma democracia que funciona.

O que se vê é que muitos estão dispostos a instrumentalizar a democracia como arma retórica –mas nem todos estão dispostos a colocar seus valores em prática.

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