Viajantes que vivem isolados dão lições para a quarentena

De carro ou de barco, convivência intensa em viagens longas ensina a viver bem durante o isolamento social

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São Paulo

A experiência de explorar lugares remotos pelo mundo ajuda viajantes a lidar com imprevistos e driblar conflitos da convivência intensa durante a pandemia.

Veja abaixo as histórias de seis deles, que viajam de carro e de barco.

‘Nosso maior desafio foi a convivência em tempo integral’

Roy Rudnick, 45
Fez duas viagens de volta ao mundo com a mulher, Michelle Weiss, 35

Na nossa primeira viagem, percorremos 60 países nos cinco continentes, de 2007 a 2009. Na segunda, foram 50 países, entre 2014 e 2017.

Buscamos regiões remotas. A gente construiu um motorhome para que pudesse ficar afastado, com água e comida por pelo menos dez dias. Entre os lugares pelos quais passamos, estão as estepes da Mongólia e a região do lago Turkana, entre Etiópia e Quênia. Fomos a Chaqmaqtin, no Afeganistão, considerada umas das comunidades mais isoladas do mundo.

Na última viagem, chegamos à vila de Ust-Kuiga, situada na latitude 70º, na Rússia. Para alcançá-la, dirigimos por 13 dias e 2.400 km (ida e volta) em estradas de inverno —900 km sobre rios congelados. A gente dormia dentro do carro, que foi adaptado com vidros duplos e aquecedores. O frio era de -55 ºC.

Agora estamos em casa, em São Bento do Sul (SC). Assim como na quarentena que todos vivem agora, nosso maior desafio nas viagens foi a convivência. Qualquer tensão cresce de forma exponencial quando temos que encarar contratempos, como frio extremo ou problemas com o carro.

Em convivência prolongada, ninguém esconde quem realmente é. Você mostra que não é perfeito e percebe defeitos no outro. O importante é colocar na balança e ver que as qualidades superam os defeitos.

Homem idoso em leme de barco com a bandeira do Brasil
Vilfredo Schurmann, nas Ilhas Malvinas, onde está passando em um veleiro com o filho e a nora - Divulgação

‘A experiência de tantos anos no mar nos dá jogo de cintura’

Vilfredo Schurmann, 72
Está em um veleiro com a família, em Port Stanley, nas Ilhas Malvinas

Viemos para cá em janeiro e o plano era voltar ao Brasil em março, mas, diante da pandemia, decidimos ficar por aqui mesmo.

Desembarcamos em Port Stanley quando precisamos abastecer o veleiro com diesel e comida, e vemos poucas pessoas na rua. Também saímos para fazer caminhadas de 7 a 10 km por áreas rurais. Temos pouco contato com outras pessoas e a internet não funciona fora de Port Stanley.

Na primeira volta ao mundo que fizemos, há 36 anos, éramos cinco pessoas em um veleiro de 44 m². Agora somos três [Vilfredo está com o filho Wilhelm, 43, e a nora Erika Ternex, 30], em 100 m². São momentos e condições diferentes.

Estou ciente do risco que corro com a pandemia, mas me sinto tranquilo, porque o mar é o lugar mais seguro. Estar aqui é um privilégio.

Esse isolamento está sendo bem produtivo. Estou escrevendo meu próximo livro e planejando nossa próxima grande expedição.

Wilhelm e Erika trabalham na manutenção do veleiro, que é constante. Também lemos muito, Erika pinta e à noite vemos filmes em um telão.

Temos um lema a bordo: muito diálogo e paciência. É fundamental ter serenidade, respeitar uns aos outros e não pegar no pé por coisas banais. A experiência de tantos anos no mar nos dá jogo de cintura.

Carro do casal Eleni Alvejan e Sergio Medeiros em deserto na Baja California, no México
Carro do casal Eleni Alvejan e Sergio Medeiros em deserto na Baja California, no México - Arquivo pessoal

‘A gente já tinha que lidar com o improviso o tempo todo’

Eleni Alvejan, 48
Viaja com o marido, Sergio Medeiros, 47, em um Land Rover Defender

Saímos de São Paulo em 2015. A gente tinha o plano de ir até o Alasca, voltar e seguir a nossa vida. No meio do caminho, mudamos de ideia. Vimos que poderíamos viver assim.

Então, adaptamos melhor o carro. Nossa minicasa tem energia solar, um teto que se expande e um tanque de água com o qual dá para tomar banho e lavar louça por uma semana.

Sempre procuramos fugir de cidade grande. Adoramos ficar perdidos por aí, acampados em praias isoladas e desertos. O perigo maior está onde tem gente.

Um dos nossos lugares preferidos é o estado mexicano de Baja California, que tem pontos de apoio, mas é ermo, com praias, montanhas e deserto.

Estamos em quarentena aqui desde o começo do mês, em um apartamento alugado na cidade de La Paz. Está proibido ficar estacionado em local público.

O plano era levar o carro para a Europa neste ano, mas vamos ficar aqui até quando for preciso.

Nossa situação é confortável, por um lado. A gente já convivia 24 horas por dia, estava longe da família e lidava todo dia com o improviso. Por outro, se ficarmos doentes, estamos sozinhos. Se acontecer alguma coisa com a família, também não podemos sair. É estranho, porque, quando a gente escolhe essa vida, a liberdade é a chave de tudo.

Dois homens sem camisa em barco, um segura um peixe
Lucas Faraco Pereira, 24, e Celso Pereira Neto, 27, irmãos que estão dando a volta ao mundo de veleiro, desde 2018 - Divulgação

’Já ficamos 17 dias sem comunicação, só nós e o mar’

Lucas Faraco, 24
Veleja desde 2018 com o irmão Celso, 27, e estão ancorados no Taiti

Saímos de Ubatuba em março de 2018 com o plano de dar a volta ao mundo no veleiro Katoosh, que nossos pais construíram e onde morei até os seis anos.

Subimos a costa brasileira e navegamos por Caribe, Canal do Panamá, Galápagos e Ilha de Páscoa. Estamos na Polinésia Francesa.

O lugar mais remoto pelo qual passamos foi a ilha Ducie, no Pacífico. Tem muitos peixes e tubarões por ali, e eles nadaram em volta da gente. Foi algo único.

Já ficamos 17 dias sem comunicação, só nós e o mar, na travessia para o Caribe, porque não tínhamos telefone por satélite. Agora, ancorados no Taiti, temos celular e internet.

Estamos aqui desde agosto de 2019, porque o barco bateu em uma baleia, e o leme quebrou. Ficamos três dias à deriva. Uma semana antes de consertar o leme, veio a pandemia e tudo está fechado. Não podemos mudar o veleiro de lugar.

Estamos acostumados a ficar isolados. Temos a nossa rotina, o que ajuda, mas sempre ficávamos isolados em movimento. Agora é hora de ler, se exercitar e se preocupar com a alimentação. Não dá para ficar esperando o tempo passar.

Temos pensado se seremos bem recebidos em nossas próximas paradas, depois da pandemia. Acho que as pessoas terão receio de gente de fora, mas não há nada que possamos fazer. Vamos seguir viagem.

Sabrina Chinellato e Henrique Fonseca na Patagônia argentina
Henrique Fonseca e Sabrina Chinellato, com o carro que usam para viajar, na Patagônia argentina - Arquivo pessoal

'Quando você vive de forma rudimentar, valoriza o conforto'

Henrique Fonseca, 34
Está dando uma volta ao mundo de carro com a namorada, Sabrina Chinellato, 27

A pandemia nos pegou no meio da nossa volta ao mundo. Começamos a viagem em outubro de 2016. Até agora, já passamos por 58 países em quatro continentes.

Chegamos à Costa do Marfim em 18 de março. No mesmo dia, iniciamos a nossa quarentena em um camping em Sassandra, onde ficamos por 15 dias. Os moradores da região estavam insatisfeitos com a presença de estrangeiros ali e tivemos que ir para a cidade de Abidjã. Lá, conseguimos o apoio da embaixada brasileira e, em 9 de abril, embarcamos em um voo para Paris e, depois, para São Paulo.

Agora, estamos em quarentena na minha cidade, Caratinga (MG). Estar nesta situação hoje é muito mais fácil, depois de a gente ter passado por diversos momentos de isolamento.

Já percorremos, por exemplo, o Deserto do Saara na Mauritânia e a Cordilheira dos Andes, no Peru. Nosso carro, um Land Rover Defender, foi preparado para enfrentar terrenos mais complicados. A gente tem uma minicasa ali dentro, com energia por painel solar e caixa d’água.

Vivemos durante um mês em uma floresta em Yukon, no norte do Canadá. Ali, não tivemos contato com ninguém. Só os ursos passavam por perto.

Em um rio, buscávamos água. E lá ficamos até que a nossa reserva de comida acabasse. Quando você vive de forma rudimentar assim passa a valorizar muito mais a natureza, o que ela oferece. Por outro lado, também valoriza muito quando tem algum conforto, desde um banho quente a uma comida boa na geladeira.

Depois que tudo isso passar, pretendemos pegar nosso carro, que ficou na casa de uma brasileira na Costa do Marfim, e seguir com a volta ao mundo. A gente acredita que a viagem deve durar mais dois anos e meio. Mas, com essa situação toda, fica difícil prever.

Casal em barco a vela
Adriano Plotzki, 41, e Aline Sena, 49, no veleiro onde vivem e trabalham - Divulgação

'Não me sinto confinado porque sempre vejo o horizonte'

Adriano Plotzki, 41
Veleja há dois anos com a esposa Aline Sena, 49; estão em Angra dos Reis (RJ)

Somos nômades, temos um canal no Youtube sobre a vida de velejadores e, há dois anos, saímos de Porto Alegre e estamos subindo a costa brasileira.

Tudo o que temos está no barco. Nós vendemos carros e apartamento e agora vivemos e trabalhamos aqui. O nosso plano é mostrar a costa brasileira no canal e em três anos ir para o Caribe e a Europa.

Estamos viajando bem devagar, entramos no litoral no Paraná, em Antonina, e ficamos oito meses por lá, nem o prefeito da cidade sabia que havia tantas ilhas ali. Entramos na mata atlântica, fomos para Cananéia (SP) e Ilha do Cardoso, e ficamos isolados na região.

Estamos acostumados a ficar longos períodos praticamente só no barco, então a quarentena não mudou muito a nossa rotina, mas mexe com o emocional, porque sabemos pelo que a sociedade está passando.

O barco tem 15 m², mas não me sinto confinado porque sempre posso ver o horizonte, podemos nadar. Nos sentimos mais seguros aqui, raramente pegamos uma gripe no barco. Sempre que vamos para uma cidade grande, voltamos gripados.

Hoje estamos em uma marina em Angra, porque o motor do barco quebrou. No início da pandemia, houve quem falasse que não poderíamos ficar aqui, mas agora está tudo resolvido.

Na questão da convivência, estamos imunizados, porque trabalhamos e moramos juntos há 18 anos. Problemas vão aparecer, mas o que funciona bem para nós é não esperar para pedir desculpas. Não precisa ganhar a discussão, é melhor resolver do que ter muito orgulho.

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