Justiça pode mudar como interagimos com o planeta, diz CEO de ONG que processa governos e empresas

ClientEarth, que começou com apenas um advogado, tem hoje mais de 250 pessoas trabalhando em casos sobre mudanças climáticas

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Cristiane Fontes
Oxford

Fundada há 15 anos com apenas um advogado, a ONG ClientEarth se tornou referência mundial em processos jurídicos que cobram medidas para enfrentar as mudanças climáticas. A entidade atua hoje em mais de 50 países, com 250 pessoas, e em diversos casos inovadores contra governos, como o britânico, e grandes empresas transnacionais, como a Shell e a Danone.

A CEO da organização, Laura Clarke, vê a litigância climática como uma maneira de usar o poder da lei para provocar mudanças sistêmicas para proteger a Terra e seus habitantes.

Em maio, a ClientEarth apresentou uma reclamação perante a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) contra a Cargill, maior empresa privada dos Estados Unidos e a maior exportadora de soja do Brasil. A ação, desenvolvida em parceria com a ONG brasileira Terra de Direitos, argumenta que a empresa tem papel no desmatamento, na conversão de ecossistemas e em violações dos direitos humanos no Brasil.

Em meio a grupo de pessoas, mulher segura cartaz dizendo 'people vs. polluters' (pessoas versus poluidores); ao fundo está o prédio da Suprema Corte, um edifício grande com colunas em estilo grego
Ativistas em protesto em frente à Suprema Corte dos EUA em julho de 2022, quando poderes da EPA (agência ambiental do país) para regular emissões de carbono de usinas foram julgados - Drew Angerer - 6.jul.2023/Getty Images/AFP

Para Clarke, as tendências da litigância climática incluem o aumento acentuado de ações focadas em empresas que fazem greenwashing (divulgação de iniciativas verdes enganosas) ou falham em tomar medidas para reduzir suas emissões de carbono.

"Eu diria que haverá um foco maior também nos interesses velados da indústria dos combustíveis fósseis. Sejam as empresas de relações públicas, bancos, indústrias de seguros, todas as indústrias que permitem e facilitam a continuação dos combustíveis fósseis", avalia.

Contra a Shell, a ClientEarth apresentou recentemente um processo focado na responsabilidade pessoal de diretores, algo inédito na área.

A estratégia da ONG envolveu a compra de ações da petroleira. Assim, na posição de acionista, a organização argumenta que os interesses daqueles que investem na empresa não têm sido respeitados.

"Alegamos que eles não estão gerenciando o risco climático suficientemente. Ao fazer isso, eles não estão pensando na viabilidade comercial de longo prazo de sua empresa e não estão pensando nos interesses de seus acionistas, entre os quais a ClientEarth é um deles", explica.

Retrato de mulher sorrindo
Laura Clarke, CEO da ONG ClientEarth, especializada em processar governos e empresas para cobrar medidas mais duras contra as mudanças climáticas - Divulgação

Outro aspecto inovador na ClientEarth é a composição do seu conselho, que inclui nomes do meio artístico como o músico britânico Brian Eno.

Além disso, a ONG faz parcerias com galerias e artistas para angariar fundos. "Acho isso incrivelmente importante para nos ajudar a amplificar a mensagem e alcançar outras partes do mundo e da sociedade. Tivemos muita sorte de trabalhar com a artista brasileira Beatriz Milhazes, que leiloou uma pintura dela, cuja renda foi revertida para o nosso trabalho", conta Clarke.

Um relatório lançado nesta quinta-feira (29) aponta que o Brasil, com 40 processos, é quinto país do mundo em litigância climática, atrás de EUA (1.590), Austrália (130), Reino Unido (102) e Alemanha (59). O estudo foi liderado pela brasileira Joana Setzer e pela britânica Catherine Higham, ambas pesquisadoras do Instituto Grantham da LSE (London School of Economics and Political Science).

Por que vale a pena usar a lei para proteger a vida na Terra? Porque achamos que a lei é uma ferramenta muito boa para promover mudança sistêmica. Precisamos enfrentar a crise climática, proteger a biodiversidade e acabar com a poluição que temos em nossos mares, em nosso ar, em nossos corpos.

Na ClientEarth, usamos a lei de três maneiras. Defendemos legislações, por exemplo, a recente legislação da União Europeia que exigirá que qualquer coisa vendida na Europa não esteja ligada ao desmatamento; treinamos advogados e promotores para que eles possam usar a lei para defender o meio ambiente; e usamos litígios estratégicos contra governos e corporações, para responsabilizá-los por seus compromissos ambientais.

A ClientEarth apresentou recentemente uma queixa contra a Cargill na OCDE por desmatamento e violações de direitos humanos associados à produção de soja em sua cadeia de fornecimento na Amazônia, mata atlântica e cerrado. Quais são os principais pedidos à Cargill? Passamos muito tempo na ClientEarth focando na responsabilidade das grandes petrolíferas pelas emissões de gases de efeito estufa. Agora queremos tirar alguns dos aprendizados disso e aplicá-los nos casos sobre o papel das grandes empresas de alimentos na crise da biodiversidade.

Estamos essencialmente dizendo que a Cargill deveria fazer muito mais para impedir que a soja comprada pela empresa esteja ligada ao desmatamento e aos abusos dos direitos humanos.

Queremos vê-los aprimorando seus processos de "due diligence" (auditoria) devido à escala do risco, mas também devido ao tamanho da Cargill e seus extensos recursos. Isso é ainda mais importante visto que a Cargill se comprometeu a estar livre de desmatamento na Amazônia e no cerrado até 2025.

Há também, é claro, algo muito importante sobre o impacto da produção de soja nos direitos humanos, com deslocamento de comunidades e também violência contra os defensores da terra. E, novamente, não achamos que a Cargill tenha políticas e sistemas adequados para lidar com os impactos sobre os direitos humanos resultantes de sua produção de soja.

Qual é o status do caso da ClientEarth contra a Shell e seus diretores por má gestão de riscos climáticos? A corte recusou a permissão para o nosso caso prosseguir, mas agora surgiu a oportunidade de uma nova audiência para que a rejeição de um processo histórico seja reconsiderado. Estamos ansiosos para defender esse caso e vê-lo progredir.

Em 2022, a ClientEarth ganhou um processo contra o governo do Reino Unido sobre a estratégia net zero (de neutralidade de carbono). Como resultado, o governo lançou uma versão revisada dessa estratégia em março. Análises mostram, porém, que a nova política significará apenas 92% dos cortes de emissões necessários. O que vem a seguir em relação a esse caso? Ganhamos esse caso junto com [as organizações] Friends of the Earth e Good Law Project no ano passado. O julgamento saiu no dia mais quente do ano no Reino Unido e ordenou que o governo reforçasse sua estratégia.

O novo plano que o governo apresentou no final de março, como você disse, em primeira análise, também não parece fazer o suficiente para deixar absolutamente claro como o Reino Unido cumprirá as reduções de emissões de carbono. Estamos examinando esses documentos com muito cuidado e, então, consideraremos os próximos passos.

Casos como esse não mostram que há limites para o que pode ser feito sem ação política? Claro, a ação política é realmente crítica. Mas acho que você tem que pensar no contexto em que a ação política ocorre. A lei tem um papel muito importante a desempenhar, e os tribunais estão exigindo que os governos façam mais.

Há um outro elemento também. Toda vez que um caso como esse é apresentado, ele aumenta a conscientização do público em geral e cresce a pressão pública e política sobre políticos e governos, para que tomem medidas sobre essas coisas.

Pessoas seguram cartazes em frente a edifício grandioso com colunas em estilo grego-romano
Ativistas protestam em frente à Suprema Corte dos EUA durante julgamento que limitou poderes de agência ambiental para combater mudanças climáticas - Sarah Silbiger - 30.jun.2022/Reuters

Um novo estudo da LSE (London School of Economics) mostra que as ações dos grandes poluidores caem após um processo climático. Na sua opinião, quais são as principais tendências para o litígio climático nos próximos anos? Acho que há uma linha muito interessante de litígio sobre direitos humanos e mudança climática, como o caso em que o Comitê de Direitos Humanos da ONU concordou que o governo australiano violou os direitos humanos de ilhéus do estreito de Torres ao não tomar medidas suficientes sobre a crise climática.

Existem vários outros casos em andamento que dizem, essencialmente, que os governos têm a obrigação de agir sobre as mudanças climáticas, como uma questão de direitos humanos. Mas acho que talvez o aumento mais acentuado de litígios esteja no espaço corporativo: empresas que não estão fazendo a sua parte, que podem estar enganando os consumidores ou fazendo greenwashing, ou podem estar falhando em divulgar suas emissões ou tomar medidas para reduzi-las. Essa é uma tendência muito grande.

Eu diria que haverá um foco maior também nos interesses velados da indústria dos combustíveis fósseis. Sejam as empresas de relações públicas, bancos, indústrias de seguros, todas as indústrias que permitem e facilitam a continuação dos combustíveis fósseis. Iluminar esses atores também será muito importante.

Leia mais entrevistas do projeto Planeta em Transe

Há alguns meses, entrevistamos Joana Setzer, professora da London School of Economics e pesquisadora de litigância climática. Ela mencionou também a estratégia de empresas usarem ações na Justiça para a negação das mudanças climáticas, para conterem o progresso na luta contra a crise climática. Como vê esses casos? Sim, isso é absolutamente uma tendência também. Litígios climáticos nem sempre são progressivos. Nem sempre são impulsionados por pessoas que desejam acelerar a ação climática, também podem estar na outra direção.

Por exemplo, o aeroporto de Schiphol, na Holanda, recentemente apresentou propostas para reduzir o número de voos, e a [companhia aérea] KLM abriu um processo contra essa medida. Acho que devemos tentar desafiar isso.

Retrato de mulher com braços cruzados
Joana Setzer, advogada brasileira e professora da LSE (London School of Economics), especialista em litigância climática - Jeremie Souteyrat/Divulgação

Por que e como a ClientEarth tem colaborado com as indústrias criativas? Este é um desafio abrangente que estamos enfrentando, e você tem que vir de todos os setores da sociedade —da política, da sociedade civil, das empresas, do direito, mas também das indústrias criativas—, porque precisamos sensibilizar as pessoas e precisamos mudar corações e mentes.

A ClientEarth teve uma colaboração muito boa com a indústria da música, por exemplo. Brian Eno é um dos nossos conselheiros, e temos uma parceria com o Coldplay. David Gilmour, do Pink Floyd, é um grande apoiador. Acho isso incrivelmente importante para nos ajudar a amplificar a mensagem e alcançar outras partes do mundo e da sociedade.

Também trabalhamos com artes. A Gallery Climate Coalition nos apoiou com uma campanha chamada Artists for ClientEarth, na qual fizemos leilões, onde artistas venderam seus trabalhos para clientes pelo trabalho que fazemos.

Tivemos muita sorte naquele projeto de trabalhar com a artista brasileira Beatriz Milhazes, que leiloou uma pintura dela, cuja renda foi revertida para o nosso trabalho de proteção das pessoas e do planeta.


RAIO-X

Laura Clarke, 45

É CEO da ONG ClientEarth, especializada em processos relacionados a clima e biodiversidade. Antes, trabalhou por duas décadas em funções governamentais, de políticas públicas ede diplomacia, entre as quais foi a alta comissária do Reino Unido para a Nova Zelândia. Foi condecorada com a Ordem do Império Britânico em 2021.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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