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Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Antropofagia de Caetano Veloso explica a história de toda a música sertaneja

Tropicalistas foram vitoriosos ao misturar influências externas numa estética brasileira, que influenciaria vários gêneros

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O tropicalista Caetano Veloso comemora 80 anos neste domingo, 7 de agosto. O baiano é um vitorioso. Apesar de ter sido achincalhado pelas esquerdas quando do auge do tropicalismo na década de 1960 e exilado pela direita ditatorial, a médio prazo Caetano Veloso conseguiu implantar no Brasil seu projeto cultural, a antropofagia, conceito que também ajuda a explicar a história da música sertaneja.

Caetano fagocitou o conceito de Oswald de Andrade, que andava meio esquecido naqueles anos rebeldes. Segundo o modernista, a antropofagia seria o movimento cultural que buscasse a deglutição da cultura do outro —daí o caráter metafórico da palavra "antropofágico"—, fosse a cultura americana e europeia, a cultura dos ameríndios ou dos afrodescendentes. Cabia misturar tudo num caldeirão estético criativo que fundasse uma estética brasileira crítica em relação ao mundo.

O músico Caetano Veloso - Divulgação

Nos anos 1960, os alvos de Caetano eram as esquerdas folcloristas e as direitas tradicionalistas. Parte considerável das esquerdas da MPB da época rejeitava a mistura com a cultura pop da Jovem Guarda, a ponto de realizarem em 1967 uma passeata contra a guitarra elétrica pelas ruas de São Paulo.

Contra as direitas, Caetano utilizava a miscigenação musical para contestar a tradicional família brasileira. Ao atacar ambos os lados de uma sociedade polarizada, Caetano ficou isolado. A direita encarregou-se de exilá-lo; as esquerdas folcloristas bateram palma. Paradoxal encontro de opostos políticos.

Se a curto prazo Caetano perdeu a batalha, a guerra começava a ser ganha. O exílio fez boa parte das esquerdas repensar as ousadas posturas do baiano. Por fim, os tropicalistas foram vitoriosos, tornando-se cânone. Depois da tropicália, podemos misturar as alfaias do maracatu com guitarras do rock sem culpa. Rock nacional, manguebeat, funk carioca, axé, pagode —tudo que apareceu depois dos anos 1960 surgiu legitimado pela amplitude estética tropicalista. E a música sertaneja?

Indo um pouco além dos marcos tradicionais da bibliografia musical no Brasil, pode-se dizer que a música sertaneja já era antropofágica antes do tropicalismo.

Gêneros estrangeiros adentraram a música do sertão a partir dos anos 1950. Inicialmente entraram boleros e rancheiros mexicanos, guarânias paraguaias e chamamés argentinos. "Índia", gravada em 1953 por Cascatinha e Inhana, era uma guarânia. "Estrada da Vida", de 1977, o maior sucesso de Milionário e José Rico, é uma rancheira composta no Brasil. A guarânia "Fio de Cabelo", de 1982, fez Chitãozinho e Xororó vender pela primeira vez 1 milhão de exemplares de um disco de música sertaneja.

A partir de 1969, o rock entrou na música do sertão por meio dos pioneiros Leo Canhoto e Robertinho. O nome Robertinho vinha da influência do então roqueiro Roberto Carlos, mas também de Beatles, Rolling Stones e outros nomes do rock mundial.

Nos anos 1980, a música sertaneja abriu-se para o brega. Na mesma época veio também a influência da música country americana. O caldeirão cozia uma gororoba estética pronta para explodir nos anos 1990, quando a música sertaneja deixou de ser um produto regional para circular em todo o país.

Neste século 21 houve canções influenciadas pelo funk —"Eu Quero Tchu, Eu Quero Tcha", de João Lucas e Marcelo—, forró —"Ai Se Eu Te Pego", de Michel Teló—, folk —boa parte da obra de Victor e Leo—, bolero —"Infiel", de Marília Mendonça—, além de bachata, reggaeton e outros gêneros de origem latina. Não há um gênero musical no país que abrigue, sob um mesmo rótulo, tamanha diversidade de estilos musicais.

Apesar das semelhanças de propósito, os resultados da antropofagia sertaneja estão muito distantes dos desejos dos tropicalistas. Tanto Caetano e Os Mutantes quanto Chitãozinho e Xororó absorveram o rock dos Beatles, mas produziram resultados sensivelmente diferentes.

A antropofagia não tem pedigree. Essa é uma das maravilhas do conceito —seus resultados não estão previstos nas bulas dos ingredientes originais. O cozido final leva o tempero daquele que mexe o caldeirão. E, se o resultado não apetece a determinados paladares, quase sempre isso acontece pois, como já escreveu criticamente Caetano, "Narciso acha feio o que não é espelho".

A música sertaneja propõe uma antropofagia das massas, popular, radical, intensa. Suas limitações são evidentes, especialmente porque suas transformações são muito mediadas pelo mercado. Mas sua riqueza e seu potencial também são igualmente estimulantes. Está aí um dilema tipicamente tropicalista.

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