Burro derrete corações em Cannes com 'EO', que retrata os vícios e virtudes humanas
Skolimowski brilha com animal carismático, enquanto longa de Desplechin com Marion Cotillard fala do ódio entre irmãos
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Foi com certa surpresa que o simpático burro filmado por Jerzy Skolimowski parece ter conquistado a imprensa no Festival de Cannes. Era difícil imaginar que o animal que dá nome a "EO" —"ió" em português, como o som que os burros fazem— levaria o público numa jornada tão dramática, divertida e intensa.
Mas ao ecoar "A Grande Testemunha", de Robert Bresson, o cineasta polonês de 84 anos apresentou a viagem mais delirante e original dos filmes em competição até agora. Assim como o longa de 1966, "EO" acompanha a vida de um burro, que viaja a Europa mudando de tutor, experimentando o que há de melhor e pior na humanidade.
É com muita habilidade que Skolimowski, em sua sexta tentativa de levar a Palma de Ouro —ele já embolsou outros prêmios com "Vivendo Cada Momento" e "Estranho Poder de Matar"—, deixa seu público entretido. Tecnicamente, o filme se destaca, em especial por sua fotografia cuidadosamente pensada para fazer o protagonista animal mais relacionável com a plateia humana.
É possível entender que o bicho chora quando precisa abandonar sua parceira de picadeiro, num circo. Depois parece gritar enquanto torcedores fanáticos acompanham uma partida de futebol. Ele sente clara inveja de um cavalo que ganha longos banhos diários e, depois, desdenha de um grupo de políticos que inaugura uma obra na cidade.
Todos esses sentimentos chegam à tela sem esforço, sem que um burro de CGI, ou computação gráfica, tenha de ser recriado –talvez a Palma canina deva ser rebatizada para premiar o burro de "EO". A humanização acontece com muita destreza técnica, o que torna a mensagem contra a violência animal, o retrato da Europa contemporânea e a denúncia de vícios e virtudes humanos totalmente palatáveis e sensíveis.
Também do velho continente vem "Frère et Soeur", ou irmão e irmã, novo filme do francês Arnaud Desplechin. A obra é um ensaio sobre o ódio inquestionável e inexplicável entre dois irmãos, papéis dos excelentes Melvil Poupaud e de Marion Cotillard, sempre presente em Cannes.
Na trama, os irmãos que estão há anos sem se falar voltam a frequentar os mesmos ambientes quando seus pais sofrem um grave acidente de trânsito. Eles são hospitalizados e a morte à espreita faz o drama familiar avançar. Ela é uma atriz de sucesso e ele, um escritor igualmente popular, que se odeiam por motivos nunca claramente explicados —e é nessa desimportante incerteza que mora o cerne de "Frère et Soeur".
Tudo no filme é exaustivamente carregado, da trilha sonora pesada aos diálogos e picuinhas entre os personagens, que em sua intensidade se comunicam quase sempre por meio de gritos, lamúrias e surtos.
Desplechin, por sua vez, está na sétima tentativa de arrematar a Palma de Ouro e já foi premiado na Quinzena dos Realizadores por "Três Lembranças da Minha Juventude". Em contraste com os veteranos, houve o estreante Tarik Saleh, cineasta nascido na Suécia e com raízes no Egito, país onde se passa a história de "Boy from Heaven", ou garoto do paraíso.
Um thriller político descolado da cartilha ocidental do subgênero, ele acompanha um rapaz que vai estudar na universidade Al-Azhar, uma das principais instituições de ensino do mundo islâmico, no Cairo. Mas quando a maior autoridade religiosa do país adoece, uma complexa engrenagem para decidir seu substituto é acionada, opondo o bom senso ao radicalismo e empurrando o protagonista para um perigoso complô.
É com originalidade que o thriller "Boy from Heaven" se apresenta, dando um ar de novidade ao propor ao público majoritariamente ocidental do Festival de Cannes um mergulho na política, cultura e religião do mundo árabe.
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