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Hussein Kalout

Lula erra, cai em armadilha e perde credibilidade na crise da Venezuela

Mítico postulado de que o Brasil é 'líder natural' da América do Sul já não se sustenta

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Hussein Kalout

Cientista político, professor de relações internacionais e pesquisador na Universidade Harvard; ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018, governo Temer)

[RESUMO] Inúmeras falhas do governo Lula em relação à crise democrática na Venezuela mostram a debilidade da pretensão brasileira de ser uma liderança na América do Sul. Bússola ideológica da política externa levou Brasil a uma armadilha. País parece preferir uma ditadura alinhada ao Sul Global a uma democracia simpática a Washington.

A crise política na Venezuela é o teste mais importante para a política externa do governo Lula 3. Coloca-se à prova a competência dos seus formuladores, testa-se a capacidade dos operadores de amealhar informações estratégicas baseadas em evidências tangíveis e expõe-se a debilidade do processo decisório no compasso regional. Em jogo, não está apenas a Venezuela, mas, também, os limites da liderança brasileira na América do Sul.

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, com Lula durante Cúpula Sul-Americana no Palácio do Itamaraty, em Brasília, em maio de 2023 - REUTERS

O Brasil incorreu em graves e sucessivos erros de avaliação estratégica sobre a complexidade da crise política venezuelana. O primeiro equívoco foi o voto de confiança concedido pelo governo brasileiro a Caracas, de forma antecipada, na crença de que tratar bem Nicolás Maduro e estender-lhe o tapete vermelho, em Brasília, em maio de 2023, daria ao Brasil uma vantagem comparativa para influenciar o transcurso dos acontecimentos no país vizinho.

O segundo deslize foi acreditar na boa-fé ou na moderação do presidente venezuelano sem exigir compromisso firme e contrapartidas logo na largada.

Com o passar do tempo, estava claro que Maduro não deixaria o poder sob hipótese alguma. A estratégia madurista de fraudar a eleição entrou em curso não no dia da votação, mas quando o mandatário venezuelano passou a prender opositores ao regime, caçar candidaturas competitivas e impedir registros de oposicionistas às vésperas do pleito presidencial.

Os formuladores da política exterior do Brasil erroneamente se fiaram nos Acordos de Barbados como potencial barreira que limitaria a sanha autoritária de Maduro. Contudo, ele, que nunca dependeu do Brasil como depende de China, Rússia e Cuba, usou Brasília e convenceu os assessores presidenciais de Lula de que o regime teria cancha para vencer a eleição de modo "idôneo".

O entorno do presidente se dividiu. Alguns acreditaram na fábula madurista, ao passo que outros nem tanto. Estes, de todo modo, sempre preferiram uma vitória de Maduro a alguém da oposição por razões geopolíticas mais amplas. Enxergam a eleição na Venezuela como parte do embate entre os proponentes de uma nova ordem global, ente os quais o Brasil, sob liderança da China e Rússia, versus a hegemonia ocidental dos EUA e aliados europeus.

O teorema no qual o governo brasileiro se baseia está ancorado na seguinte perspectiva: se Maduro cair e a oposição triunfar, o resultado terá sido uma vitória do "imperialismo ocidental". Se o regime prevalecer, não importando a forma e a circunstância, significa a derrota dos EUA e o triunfo dos países antagonistas (China, Rússia e os demais do Sul Global).

Todavia, se o governo brasileiro acreditou que Maduro, de fato, venceria a eleição sem fraudá-la, os formuladores da política externa subestimaram a capacidade e a força de articulação da oposição venezuelana. E se o Brasil realmente pensou que, em caso de derrota, Maduro efetuaria uma transição pacífica do poder, pecou pela inocência.

Assim, o Brasil, observando os acontecimentos de longe e gastando energias em outros tabuleiros geopolíticos de altíssima complexidade, como as guerras na Ucrânia e em Gaza, descuidou do tema que está hoje alvejando o coração da política exterior e minando diretamente o prestígio de Lula e a credibilidade do país.

O que a crise política venezuelana nos expõe, fundamentalmente, é o limite da liderança brasileira na solução desse impasse —ou os limites do Brasil para liderar complexos processos de pacificação e estabilização em sua própria região.

A instabilidade na América do Sul é evidente e cristalina. As crises institucionais no Peru, no Equador, na Bolívia e na Venezuela são exemplos das enormes dificuldades que o Brasil enfrenta na ordem regional. Algumas questões essenciais a serem respondidas: por que o Brasil não consegue atuar com efetividade na solução das crises nos países de seu entorno geográfico? E por que, nas questões em que atua, os resultados políticos padecem de falta de concretude?

O mítico postulado de que o Brasil é "líder natural" da América do Sul já não se sustenta. Trata-se de uma expressão romanceada nos círculos diplomáticos, que na realidade perdeu aderência e tração.

Liderança enseja custos e concessões. Quem quer liderar deve propor um projeto coerente, concreto, real e tangível para a região. Liderança exige que haja atuação perene do país postulante. Não basta dizer que a América do Sul é uma prioridade. É preciso agir por meio de ações de poder estratégico, econômico e comercial. Qual seria, de fato, o poder ou a influência econômica do Brasil hoje na Venezuela, por exemplo?

Além disso, é necessário que o Brasil ofereça para os seus vizinhos um projeto sério de integração e não somente propor a "recriação da Unasul". De modo geral, os problemas de alguns países sul-americanos seguem sendo crime organizado, colapso econômico, desemprego, queda de produtividade, crise climática, déficit democrático, autoritarismo, desigualdade social e crises político-institucionais. Que projeto o Brasil propõe para essas mazelas? Como pode ajudar seus vizinhos?

O governo do presidente Jair Bolsonaro não economizou em sua agressividade retórica contra diversos países da América do Sul. As nossas relações com muitos vizinhos ficaram avariadas, e o Brasil ficou isolado. A abordagem diplomática junto à Venezuela, implementada pelo governo Bolsonaro, foi torpe em todos os sentidos.

Discutir a possível invasão militar de um país vizinho e oferecer o território nacional como plataforma para operações bélicas é, simplesmente, insano. Fechar a embaixada brasileira em Caracas foi outra atitude inconsequente e desprovida de prudência e razão.

Dialogar com o regime venezuelano é necessário e fundamental. No entanto, dialogar com a oposição é igualmente necessário. O Brasil não pode e tampouco deve virar as costas para um país fronteiriço importante, imerso em crise política e drama social.

Concessões de legitimidade e de prestígio não deveriam ter sido antecipadas a Maduro, como ocorreu logo no início do governo Lula 3. A articulação de uma tríade latino-americana entre Colômbia, México e Brasil, por exemplo, deveria ter sido proposta há meses e não após a eleição. Era patente que vários países da região não reconheceriam o "triunfo" de Maduro sem uma auditoria crível e independente.

Cabe sublinhar ainda que, a essa altura, a apresentação das atas eleitorais de votação já não possui relevância alguma. Se o regime tivesse vencido de forma limpa, Maduro ou as instituições que ele controla já teriam feito isso.

Apresentá-las agora apenas confirmará a fraudulenta vitória. É difícil crer que o resultado da auditoria da Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela será adverso a Maduro ou que irá reconhecer a vitória de Edmundo González Urrutia –o esperado é a consagração do triunfo do regime.

No fundo, o Brasil foi encurralado e caiu em uma armadilha. O governo Lula não se via em condição de criticar o regime venezuelano e tampouco poderia reconhecer o resultado da eleição. Se criticasse a falta de lisura do pleito ficaria em maus lençóis com Maduro e, consequentemente, à deriva. Se reconhecesse o resultado da eleição, ficaria mal no contexto doméstico e no mundo.

Na calculadora ideológica dos formuladores da diplomacia nacional, a assunção da oposição venezuelana ao poder limitaria as possibilidades de o Brasil operar junto a Caracas, já que um novo governo venezuelano seria, inexoravelmente, compelido a se alinhar automaticamente a Washington e, logo, a se distanciar de Brasília.

Destroçar a ordem democrática e praticar violações no campo dos direitos humanos, como ocorre na Venezuela, deveria ser uma questão profunda para a diplomacia brasileira.

Contudo, na gramática geopolítica de quem formula a política externa, o paradigma vigente nos dias atuais é baseado na seguinte premissa: se o Ocidente exerce com cinismo e hipocrisia sua política internacional e não admite ser prejulgado moralmente pelos países emergentes, por que os países emergentes não podem então tomar emprestado esses mesmos vetores para defenderem também os seus interesses?

Essa parece ser a chave explicativa da bússola que orienta a política externa brasileira sobre a Venezuela. É preciso avaliar se ela será suficiente para justificar as responsabilidades que o Brasil possui no contexto interno e internacional.

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