Siga a folha

Descrição de chapéu The New York Times

Reforma das Forças Armadas promovida por Putin é chave para pressão na Ucrânia

Presidente russo multiplicou investimentos e militarizou sociedade para impor sua visão de mundo

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Anton Troianovski Michael Schwirtz Andrew E. Kramer
Moscou | The New York Times

​Nos primeiros anos de Vladimir Putin na Presidência da Rússia, as Forças Armadas do país estavam enfraquecidas, embora envoltas por uma armadura nuclear.

Elas tinham dificuldade em manter submarinos navegando no Ártico e em combater uma insurgência mal armada na Tchetchênia. Oficiais de alta patente às vezes viviam em cortiços infestados de ratos. E, no lugar de meias, os mal treinados soldados frequentemente envolviam os pés em faixas de pano, como tinham feito seus predecessores soviéticos e czaristas.

Militar russo dispara um morteiro durante exercício em Kuzminski, na Rússia - Serguei Pivovarov - 26.jan.22/Reuters

Duas décadas mais tarde, os agrupamentos deslocados perto da fronteira com a Ucrânia não poderiam ser mais diferentes. Sob a liderança de Putin, as Forças russas foram reformadas, virando um Exército moderno e sofisticado que, segundo analistas militares, pode ser usado rapidamente e com efeito letal em conflitos convencionais. Há armas guiadas com precisão, estrutura de comando nova e mais enxuta e soldados profissionais e bem alimentados. E ainda armas nucleares.

As Forças Armadas modernizadas emergiram como chave na política externa de Putin: na captura da Crimeia, na intervenção na Síria, na manutenção da paz entre Armênia e Azerbaijão e, neste mês, para respaldar um líder do Cazaquistão alinhado a Moscou. Hoje esse Exército está no meio de sua operação mais ambiciosa até agora e potencialmente a mais perigosa —usando ameaças e talvez, como muitos temem, a força para trazer a Ucrânia de volta à esfera de influência.

"A mobilidade das Forças Armadas, seu preparo e seus equipamentos são o que permitem que a Rússia pressione a Ucrânia e o Ocidente", diz o analista de segurança russo Pavel Luzin. "Armas nucleares não são o bastante."

Sem disparar um tiro, Putin forçou Joe Biden a abrir mão de outras prioridades de política externa e lidar com as queixas do Kremlin que a Casa Branca vinha ignorando.

Trata-se do mais ousado uso que Putin faz de seu poder militar para devolver pela força a relevância global que a Rússia perdeu com o fim da Guerra Fria. O presidente delineou essa doutrina em 2018, quando usou seu discurso anual sobre o Estado da União para apresentar novas armas nucleares capazes de voar a 20 vezes a velocidade do som. "Ninguém nos deu ouvidos", disse, acompanhado de uma simulação em vídeo mostrando um míssil russo dirigindo-se aos EUA. "Ouçam-nos agora."

Hoje, a posição da Rússia está fortalecida graças à reforma de suas forças convencionais. Os tanques T-72B3 concentrados na fronteira possuem um sistema de combate noturno e mísseis guiados com alcance duas vezes maior, segundo Robert Lee, doutorando do King’s College e especialista nas Forças russas. "Os mísseis de cruzeiro Kalibr levados por navios e submarinos no mar Negro e os foguetes Iskander-M posicionados na fronteira podem alcançar alvos situados em qualquer ponto da Ucrânia", diz.

Nos últimos dez anos a Força Aérea russa dotou-se de mais de mil aeronaves novas, segundo artigo de 2020 do vice-ministro da Defesa Alexei Krivoruchko. Entre elas, caças SU-35S, dos quais um esquadrão foi recém-deslocado para a Belarus para exercícios em fevereiro.

Essas novas capacidades foram evidenciadas na intervenção russa na Síria, em 2015. "Tenho vergonha de admitir que fiquei espantado quando mísseis Kalibr saíram voando do mar Cáspio e atingiram alvos na Síria", diz o general Ben Hodges, ex-comandante do Exército dos EUA na Europa. "Foi uma surpresa —não apenas a eficiência dos mísseis, mas o fato de eu nem sequer saber da presença deles."

O pensamento do Kremlin também evoluiu no tocante às dimensões das Forças Armadas. Hoje elas dependem menos de recrutas que prestam serviço militar obrigatório e mais de um núcleo enxuto e bem treinado de cerca de 400 mil soldados contratados.

Em visita ao Ministério da Defesa em dezembro, Putin gabou-se de que um tenente hoje geralmente ganha um pouco acima do equivalente a US$ 1.000 mensais, mais que a média paga em outros setores. Segundo ele, o governo gasta US$ 1,5 bilhão com habitação particular subsidiada para membros das Forças Armadas. E hoje todos os soldados recebem obrigatoriamente meias grossas.

As Forças ainda aperfeiçoaram uma abordagem que Dmitri Adamski, estudioso de segurança internacional na Universidade Reichman, em Israel, descreve como "coerção em muitos domínios".

Essa estratégia combinada está sendo vista em ação na crise atual em torno da Ucrânia: a Rússia está pedindo concessões imediatas e amplas do Ocidente; deslocamentos de tropas na aliada Belarus colocaram uma potencial força invasora a menos de 160 km de distância de Kiev; a mídia estatal divulga que são as Forças ucranianas que estão preparando atos de agressão; e hackers tiram dezenas de sites do governo ucraniano do ar e postam mensagem dizendo: "Tenham medo e prevejam o pior".

"Vemos alguns ciberataques, diplomacia e exercícios militares", diz Adamski. "Tudo isso está sendo feito em conjunto, intencionalmente."

Nem todas as forças posicionadas na fronteira ucraniana são as mais avançadas da Rússia. As dispostas no norte possuem armas mais antigas e estão ali principalmente para intimidar e desgastar recursos ucranianos limitados, diz Oleksi Arestovich, antigo oficial da inteligência da Ucrânia e hoje analista político e militar. Segundo ele, as unidades mais modernas estão numa área próxima às províncias separatistas no leste da Ucrânia, onde em 2014 a Rússia instigou uma guerra separatista que continua até hoje.

Cada vez mais, também, a intenção é que a modernização militar envie um recado aos EUA, projetando o poder russo para além do Leste Europeu.

Analistas dizem que a Rússia usou a guerra na Síria como laboratório para refinar táticas e armamentos e para dar experiência de combate a muitas de suas forças. Mais responsabilidade foi delegada a oficiais de escalão mais baixo. O ministro da Defesa, Serguei Shoigu, disse que todos os comandantes das tropas terrestres, 92% dos pilotos da Força Aérea a 62% da Marinha têm experiência de combate.

"Eles mostraram a si mesmos e ao mundo que são capazes de travar operações em grande escala com armas de precisão e de longo alcance", diz Adamski.

Não obstante os avanços, as Forças russas mantêm uma fraqueza que crítica nas soviéticas: o lado civil da economia, quase destituído de manufatura high-tech e investimentos corporativos em pesquisa e desenvolvimento. Os gastos do Exército representam uma porcentagem muito maior do PIB do que na maioria dos países europeus.

Um momento de virada se deu em 2008, quando um conflito que vinha borbulhando sobre territórios disputados na Geórgia explodiu em guerra. As Forças russas rapidamente dominaram o vizinho, mas o conflito trouxe à tona debilidades profundas. As tropas terrestres não mantinham contato por rádio com a Força Aérea, o que levou a vários incidentes graves de fogo amigo. Oficiais tiveram que usar celulares pessoais, e tanques e blindados sofriam panes e avarias frequentes.

Em vista desses problemas, foi empreendida uma revisão profunda. A eficiência das Forças soviéticas em guerra terrestre foi recuperada, com melhorias como a modernização da tecnologia de artilharia, segundo Mathieu Boulègue, pesquisador-sênior do programa de Rússia e Eurásia do Instituto Chatham House.

Moscou sofreu reveses, incluindo falhas preocupantes de armamentos. Em 2019, um protótipo de um míssil de cruzeiro de propulsão nuclear –saudado por Putin como elemento principal de uma nova corrida armamentista com os EUA— explodiu num teste, matando pelo menos sete pessoas e expelindo radiação por quilômetros em volta.

Mas, com o discurso do Kremlin cada vez mais descrevendo a Rússia como estando em um conflito existencial com o Ocidente, não foram poupadas despesas. O investimento foi acompanhado por uma militarização da sociedade, reforçando o conceito de uma pátria cercada por inimigos e da possibilidade de uma guerra no futuro próximo.

Diante de tudo isso, dizem analistas, será difícil o Ocidente conseguir impedir Putin de atacar a Ucrânia, se ele estiver determinado a isso. "Há muito pouco que possamos fazer contra a capacidade russa de travar mais guerra contra a Ucrânia", diz Boulègue. "Não podemos barrar uma visão de mundo."

Tradução de Clara Allain

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas