Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Reforma policial tem pouca chance de ser aprovada, e negros continuam morrendo nos EUA

Ano de 2022 teve o maior número de assassinatos cometidos por policiais já registrado

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The New York Times

Havia defuntos no Estado da União. Não estou falando do deputado George Santos. Acho que ele não terá vida longa na Câmara dos Deputados, porque sua imensidão de mentiras ameaça acabar com ele.

Não me refiro a Kevin McCarthy, que em seu esforço abjeto para se tornar presidente da Câmara colocou um laço em volta do próprio pescoço. Tampouco estou falando do presidente Joe Biden, que ainda está em dificuldades nas pesquisas exatamente pela razão que o levou a ser eleito –o fato de ser um antídoto calmo e reflexivo à loucura interminável de Donald Trump e que agora virou seu maior obstáculo, com um público viciado em drama e escândalos recuando diante de sua postura refletida.

Memorial para Tyre Nichols, homem negro morto em abordagem policial em Memphis, nos EUA
Memorial para Tyre Nichols, homem negro morto em abordagem policial em Memphis, nos EUA - Scott Olson - 26.jan.23/Getty Image via AFP

Estou falando de dois homens negros, ambos mortos pela polícia: um deles alguns anos após o fim da guerra civil nos EUA e o outro no mês passado.

Em 31 de março de 1870, um policial da Filadélfia atirou num homem negro desarmado, Henry Truman, numa viela do bairro Society Hill. O projétil penetrou o abdome e lhe tirou a vida.

Nos dias seguintes, o jornal Philadelphia Inquirer publicou o depoimento de testemunhas. Jennie H. Gardner, 19, descreveu como o policial agarrou um suspeito, que escapou e "desapareceu numa viela". O policial o perseguiu e se deparou com Truman, que lhe perguntou qual era o problema.

Então, disse Gardner, o policial respondeu: "Vou lhe mostrar qual é o problema" e atravessou a rua. "Ele então sacou o revólver e disparou intencionalmente. Eu estava ao lado de Truman naquele momento."

O policial foi preso, e seu pedido de fiança, negado. No julgamento, o policial argumentou que temeu por sua vida e atirou em defesa própria (isso parece algo que você já ouviu antes?) quando uma multidão o seguiu, o encurralou e "começou a jogar pedras e a gritar ‘matem o branco’ e outras expressões ameaçadoras dessa natureza", escreveu o Inquirer.

O júri não acreditou. O policial foi condenado por homicídio culposo.

Foi em memória desse episódio, um dos primeiros casos conhecidos nos EUA de um policial matar um homem negro livre e desarmado, que membros do Congressional Black Caucus, ligado à bancada de parlamentares negros, usaram broches com os números 1870 no discurso do Estado da União, na noite de terça. O gesto tinha o objetivo de chamar a atenção para a história longa e aparentemente interminável desse tipo de violência e para a necessidade extrema de uma reforma policial.

Como disse a deputada democrata Bonnie Coleman, de Nova Jersey, no "The Dean Obeidallah Show", sobre os assassinatos de negros pela polícia: "As coisas não melhoraram. Estamos ficando piores nisso".

Na realidade, 2022 teve o maior número de assassinatos pela polícia já registrado, sendo a chance de negros terem sido mortos desproporcionalmente mais alta que a de brancos.

Sob alguns aspectos, o modo como processamos esses casos ficou mais complicado. Em 1870, o policial foi detido imediatamente e condenado em menos de dois meses. Hoje os tribunais e as legislaturas estaduais protegem os policiais de tantas maneiras que prisões e condenações são raras.

Também estiveram presentes ao discurso do Estado da União a mãe e o padrasto de outro negro que teve o mesmo fim que Truman, 153 anos mais tarde: Tyre Nichols, que morreu no mês passado depois de ser selvagemente espancado por policiais de Memphis, no estado do Tennessee.

Num ato de perversidade de quem abateu uma presa de grande porte, um dos policiais fotografou o corpo ensanguentado de Nichols após o espancamento e mandou a foto a outros pelo celular.

Biden se solidarizou com os pais de Nichols, falou do medo enfrentado por pessoas e famílias negras; mencionou sua ordem executiva "a todos os policiais federais proibindo estrangulamentos, limitando ordens de busca e apreensão em residências sem aviso prévio aos moradores, e outros elementos chaves da Lei George Floyd"; e exortou o Congresso a "se unir e concluir o trabalho de reforma da polícia".

Foi um retorno ao Biden de 2021 que, em seu discurso perante uma sessão conjunta do Congresso, disse: "Precisamos nos unir para reconstruir a confiança entre a polícia e a população à qual ela serve, para erradicar o racismo sistêmico em nosso sistema de justiça penal e para promulgar uma reforma policial em nome de George Floyd, que já foi aprovada pela Câmara".

No ano passado, durante a campanha para as midterms, na qual os republicanos estavam manipulando o medo da criminalidade, Biden não incluiu nenhuma referência ao racismo ou a reformas em seu discurso do Estado da União, mas disse enfaticamente: "Precisamos todos concordar que a resposta não é desfinanciar a polícia. É financiar a polícia. Financiá-la. Financiá-la."

Uma reforma policial real tem ainda menos chances de ser aprovada por este Congresso que pelo último. Tim Scott, da Carolina do Sul, o principal negociador republicano da reforma no Senado, já publicou nas redes sociais: "Ressuscitar o projeto de reforma da polícia na Câmara é algo que não vai acontecer".

O que as pessoas estão visando agora são medidas menores relacionadas a financiamento e treinamento. Mas que ninguém se engane: se é que essas medidas serão aprovadas, serão no máximo pequenas modificações. Enquanto isso, os corpos negros, desde Truman até Nichols, continuam sendo empilhados.

E os EUA se resignam a lutar contra isso.

Tradução de Clara Allain 

Erramos: o texto foi alterado

O policial citado no texto foi detido e condenado em 1870, não 1970, como indicou incorretamente a tradução de um trecho da coluna.

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