Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Descrição de chapéu The New York Times

Indiciamento de Trump pode ser passo para restaurar democracia dos EUA

Atenções se voltam para acusações criminais que pesam sobre o ex-presidente

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The New York Times

O gabinete do procurador distrital de Manhattan indicou que as acusações relacionadas aos supostos pagamentos secretos de Donald Trump à estrela pornô Stormy Daniels são prováveis.

Mas pesam algumas dúvidas sobre a questão. Se esse é o melhor caso para ser o primeiro julgado entre aqueles em que Trump provavelmente será acusado criminalmente, a força desse caso em comparação com outros e as implicações históricas de indiciar um ex-presidente por alguma coisa.

a fotografia mostra donald trump discursando diante um microfone. ele é um homem branco, já idoso, e tem cabelos grisalhos. usa terno azul e gravata vermelha. em segundo plano, um painel traz o slogan "make america great again" (torne a américa grande de novo).
Ex-presidente Donald Trump discursa sobre políticas educacionais em Davenport, Iowa - Kamil Krzaczynski - 13.mar.23/AFP

E no que diz respeito a essas implicações, as considerações centrais sempre parecem ser a importância de qualquer precedente estabelecido ao se processar um ex-presidente e o significado político disso –o dano que poderia causar ao país. Muitas vezes deixado fora desse cálculo, parece-me, é o dano que Trump já causou e está prestes a continuar causando.

A acusação não é o problema; o próprio Trump é. E qualquer alegação de que as denúncias de sua criminalidade predadora são um espetáculo colateral às disputas políticas e, portanto, foram remediadas em 2020 nas urnas, e não no júri, é em si um erro judiciário e causa danos incalculáveis.

No ano passado, na época em que o comitê da Câmara sobre o ataque ao Capitólio estava realizando audiências, Elaine Kamarck, diretora fundadora do Centro de Gestão Pública Eficaz do Instituto Brookings, escreveu: "Processar Trump não é uma simples questão de determinar se há evidências. É uma questão inserida na questão maior de como restaurar e defender a democracia americana".

Eu não vejo dessa forma. Qualquer caso contra Trump deve depender das evidências e do princípio de que a justiça é cega. As considerações políticas, incluindo apostas em qual seria a sequência ideal de casos, entre jurisdições e por sua gravidade, servem apenas para distorcer o processo judicial.

O sistema de justiça deve ser desvinculado de implicações e consequências políticas, até mesmo da possibilidade de consequências perturbadoras.

Por exemplo, um indiciamento e processo de Trump poderia causar consternação e possivelmente até agitação? Certamente. Trump vem preparando seus seguidores para seu martírio há anos e evangelizando-os com a ideia de que qualquer sanção contra ele é um ataque a eles. Essa transferência de sentimentos de perseguição e dor da vitimização fabricada é um dispositivo psicológico clássico de um líder de culto.

Trump usa as paixões que inflamou como ameaça política contra aqueles que o perseguem. Em 2019, quando enfrentava o impeachment, ele se dirigiu ao Twitter, citando uma frase do pastor Robert Jeffress, que apareceu na Fox News e postulou imprudentemente que a destituição de Trump do cargo "causaria uma fratura semelhante à Guerra Civil nesta nação, da qual este país nunca se recuperará".

No ano passado, em um programa de rádio conservador, Trump disse que, se fosse indiciado pelo suposto uso indevido de documentos confidenciais, "teríamos problemas neste país como talvez nunca tenhamos visto antes. Não acho que a população dos Estados Unidos aceitaria isso".

Repetidamente, Trump incitou seus apoiadores nessa direção: seja durante a corrida presidencial de 2016, instando os participantes de seu comício a "dar uma baita surra" nas pessoas que pudessem atrapalhar o processo, ou dizendo aos Proud Boys [apoiadores extremistas de Trump], durante um debate de 2020, para "ficarem para trás de prontidão".

Em 6 de janeiro de 2021, ele esperou e assistiu ao ataque ao Capitólio durante horas, resistindo aos pedidos de seus próprios conselheiros para que tentasse impedir o ato. Quando Trump finalmente fez uma declaração, minimizou a insurreição e, relutantemente, disse aos manifestantes para irem para casa, mas não sem acrescentar: "Nós amamos vocês. Vocês são muito especiais".

Trump é o agente da incitação. Ele usará qualquer tentativa de responsabilizá-lo para agitar e ativar seus partidários.

Essa não é uma razão para evitar processá-lo legalmente de forma vigorosa e rápida, mas sim uma razão para fazê-lo. Se estabelecermos um precedente de que agregar uma ameaça significativa à sociedade é uma proteção contra a aplicação da lei, seria zombar dela.

Isso reforçaria o que já era um problema persistente no sistema de justiça criminal: o tratamento desigual dos ricos e poderosos em comparação com os pobres e impotentes.

Uma série de estudos de mais de uma década atrás nos anais da Academia Nacional de Ciências descobriu que pessoas de alta renda eram mais propensas a mentir, trapacear e literalmente pegar doces que seriam dados a crianças. Os pesquisadores postularam que vários fatores poderiam contribuir para isso, incluindo uma percepção reduzida de risco, muito dinheiro para lidar com os "custos decorrentes" de seu comportamento, sentimentos de direito, menos preocupação com o que as outras pessoas pensam e uma sensação geral de que a ganância é boa.

Ao mesmo tempo, como Jeffrey Reiman e Paul Leighton escrevem em seu livro "The Rich Get Richer and the Poor Get Prison" ["Os Ricos Enriquecem e os Pobres são Presos"], "o sistema de justiça criminal é tendencioso do começo ao fim, de uma forma que garante que, para os mesmos crimes, os membros das classes mais baixas são muito mais propensos a serem presos, condenados e encarcerados do que os membros das classes média e alta".

Os autores vão além, teorizando que o objetivo do sistema de justiça criminal não é nem mesmo prevenir o crime ou fazer justiça, mas sim "projetar para o público americano uma imagem verossímil da ameaça de crime como uma ameaça vinda dos pobres". Quando você pensa dessa maneira, não é difícil ver como Trump e muitos de seus admiradores optam por considerá-lo alguém acima da lei. De fato, se ele não fosse rico e poderoso, as acusações quase certamente teriam sido feitas há muito tempo.

Processar Trump não vai rachar o país. Pelo contrário, seria um passo para consertá-lo, um passo para consolidar a frágil promessa de "justiça igual conforme a lei".

Os olhos do país estão voltados para esses casos –os olhos de todos aqueles que foram perseguidos por violações menores, que tiveram o livro de regras jogado contra eles por crimes dos quais outros escaparam impunes ou pelos quais não cumpriram pena. Eles não apenas estão assistindo, como também seus entes queridos e suas comunidades.

Eles também são os Estados Unidos, e prejudicar ainda mais sua fé no país deve ser tão importante quanto prejudicar a fé de qualquer outra parte do nosso corpo político.

Para reabilitar a justiça americana, Trump deve ser processado.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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