Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Charles M. Blow

Flórida de DeSantis usa vídeos infantis para deturpar história da escravidão

Como muitos conservadores hipócritas, eles não veem problema com a doutrinação nas escolas, desde que consigam controlá-la

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

A campanha presidencial de Ron DeSantis pode estar tendo problemas, na medida em que ele tem dificuldade de ganhar a adesão dos eleitores republicanos com sua fisionomia robótica e inexpressiva.

E o governador pode estar trocando funcionários de campanha como se isso lhe desse uma segunda chance de acertar, mas o mal que causou à Flórida para chegar até onde está ainda repercute no estado.

No mês passado, o Departamento de Educação da Flórida anunciou que professores do ensino primário podem usar vídeos produzidos pela PragerU Kids, de Dennis Prager, em suas salas de aula.

A PragerU não é uma universidade, não mais do que a Trump University era. Em letras miúdas na parte inferior de seu site, ela admite que "não é uma universidade credenciada, nem se declara como tal". "Não oferecemos diplomas, mas vídeos educativos, divertidos e pró-americanos para todas as idades."

Ron DeSantis, governador da Flórida e pré-candidato republicano à Presidência, em evento em Atlanta, na Geórgia
Ron DeSantis, governador da Flórida e pré-candidato republicano à Presidência, em evento em Atlanta, na Geórgia - Cheney Orr/Reuters

Na realidade, a PragerU não passa de um site de mídia de propaganda. O Southern Poverty Law Center tem uma opinião ainda mais negativa sobre suas credenciais, dizendo: "A PragerU parece ser mais ponto de conexão entre consumidores de mídia conservadora com os recantos obscuros da extrema direita".

Quanto ao próprio Prager, esse é um homem que disse em seu programa de rádio em 2020: "É uma idiotice que não se possa usar a ‘palavra com N’". (A "palavra com N" é o eufemismo usado no lugar de um palavrão extremamente ofensivo para se referir a pessoas negras). E no ano passado ele afirmou, em mentira flagrante, que "se você topar com um nó de forca no dormitório universitário de um estudante negro, é muito grande a chance de que tenha sido colocado ali por um estudante negro".

"Se você topar com a 'palavra com N' em um dormitório universitário", prosseguiu, "as chances são altíssimas de que tenha sido feito por um estudante negro. Acontecem falsos trotes racistas aos montes."

Em outras palavras, Prager é puro veneno no que diz respeito à questão racial, e qualquer coisa que nasça de seus esforços deve por definição ser vista como maculada, especialmente quando se trata de raça.

A destruição das escolas da Flórida operada por DeSantis está encharcada dessa nódoa. Dentro em breve, alunos podem estar assistindo a vídeos como um produzido pela PragerU que traz duas crianças, Leo e Layla, que parecem ser brancas, viajando no tempo para conversar com Cristóvão Colombo.

No vídeo, o Colombo de animação diz que os primeiros indígenas com quem se deparou quando desembarcou nas Bahamas, os taínos, um subgrupo dos arauaques, eram "pacíficos, curiosos e realmente prestativos". Mais tarde ele fala: "Ordenei a meus homens que os tratassem bem".

O livro do historiador Howard Zinn ("A People’s History of the United States") conta uma história diferente, detalhando como Colombo descreveu os arauaques em seu diário. "Eles dariam ótimos criados", escreveu Colombo. "Com 50 homens, poderíamos subjugar todos eles e obrigá-los a fazer o que quiséssemos."

Visões de escravização dançaram em seus olhos desde o primeiro momento. E então ele agiu. Colombo descreveu em uma de suas cartas: "Assim que cheguei às Índias, na primeira ilha que encontrei, tomei alguns dos nativos à força." No vídeo, o Colombo de animação racionaliza a escravidão, dizendo: "Ser tomado como escravo é melhor que ser morto, não? Não vejo problema nisso."

Já eu vejo um problema enorme. No vídeo, a escravização e a morte são apresentadas como as únicas opções para os indígenas, o que é uma blasfêmia. A escravidão foi uma instituição brutal e desumana, mas nem sempre foi letal. Sob Colombo, porém, a morte era um elemento destacado da instituição.

Em outro vídeo, as crianças viajam no tempo para conversar com Frederick Douglass, líder abolicionista americano do século 19. Uma das primeiras coisas que a menina diz a ele é: "Seu cabelo é muito maneiro". Sério? O Douglass de animação diz no vídeo: "Os fundadores de nossa nação sabiam que a escravidão era perversa e errada e sabiam que ela faria um mal terrível à nação. Queriam que ela acabasse, mas a primeira prioridade deles era conseguir que as 13 colônias se unissem em um só país".

Em lugar algum o vídeo menciona que os fundadores mais eminentes da nação, incluindo George Washington, Thomas Jefferson e James Madison, eram eles próprios escravizadores.

E então, no momento possivelmente mais repugnante, o Douglass de animação fala: "Não acho a escravidão OK, mas os fundadores da nação fizeram uma concessão para realizar algo grandioso: a formação dos EUA". Frederick Douglass jamais teria dito isso! Ele desprezava as concessões que conservaram e prolongaram a escravidão.

No vídeo, o Douglass desenhado diz que o ano é 1852. Mas apenas dois anos antes disso foi aprovado o Compromisso de 1850, que incluía uma lei sobre escravos fugitivos que punia até mesmo pessoas que participassem da Underground Railroad, uma rede de rotas e esconderijos criada nos EUA para facilitar a fuga de escravos do Sul escravista do país para o Norte. Douglass detestava esse "compromisso".

Em discurso em 1853, Douglass criticou o código fortemente, dizendo que ele "revela com grande clareza o grau em que a escravidão injetou sua destilação leprosa no sangue que corre nas veias da Nação".

Oito anos mais tarde, em 1861, depois de Abraham Lincoln ter defendido a Lei do Escravo Fugitivo, que exigia que cidadãos e autoridades de estados livres colaborassem na captura e devolução de escravos fugitivos aos seus proprietários, mesmo em territórios onde a escravidão era ilegal, como uma tentativa de apaziguar os traficantes de escravos do Sul, Douglass o descreveu como "um excelente cão caçador de escravos" e "o mais perigoso defensor da caça e captura de escravos no país".

Para David Blight, o biógrafo definitivo de Douglass, o vídeo da PragerU é repugnante e absurdo, e em entrevista que me concedeu ele reconheceu o perigo de que possa ser persuasivo para estudantes jovens.

Essa promoção de falácias lógicas e essa deturpação da história beneficiam alguém? Como Blight explicou, o vídeo "realmente agrada à versão e à visão da história que tantos americanos ainda desejam. Eles querem chegar ao final da história sentindo-se bem. Não querem se sentir ameaçados. Querem dormir em paz à noite. Querem saber que os maiores líderes negros estavam do lado deles, na realidade."

Utilizar Douglass dessa maneira para amenizar a escravidão é uma profanação. E é esse o legado educacional de DeSantis. Ele disse: "No estado da Flórida, temos orgulho de defender a educação nas nossas escolas, não a doutrinação". Mas neste verão, na Filadélfia, numa cúpula da organização política conservadora Moms for Liberty, Prager reconheceu seus esforços de doutrinação. Falando de críticas que recebeu, ele disse: "Tudo o que ouvi foi ‘vocês doutrinam crianças’, o que é verdade. Levamos doutrinas às crianças. Essa é uma afirmação muito justa. Eu falei: ‘O que há de mau em nossa doutrinação?’".

À verdadeira moda hipócrita de muitos conservadores, eles não veem problema com a doutrinação em si, desde que consigam controlar a forma e a função dessa doutrinação.

Tradução de Clara Allain 

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.