Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Cama

Apesar de moribundo, o Rio exportou a Alerj e o Vivendas da Barra para Brasília

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Lisboa. O taxista que me levou até o aeroporto era um senhor forte, com cabelo escovinha, que lembrava uma versão envelhecida do Manolito da Mafalda.

Militar aposentado, falou de sua admiração por Bolsonaro, extasiado com as flexões de Messias diante da tropa, ainda com a bolsa de colostomia conectada ao intestino.

Avessa a embates, julguei prudente me manter fiel à farda e confessei minha preferência por Mourão. O portuga ofendeu-se. Perguntou se eu era petista. Respondi que não, apenas considerava Jair despreparado para o cargo.

“Aquele lá é general...”, emendou o gajo com desprezo, como se a alta patente fosse atestado de mau-caratismo. Ele tinha apreço pelo capitão, não pelo Exército.

Na despedida, o clone grisalho de Manolito acrescentou que o mundo estaria resolvido, lição da caserna, no dia em que todos fizessem a própria cama. Concordei. Faço a cama todos os dias e, pelo menos nisso, meu universo se aparentava ao dele.

Foi a última frase que ouvi, antes de encarar o novo Brasil moralista, fundamentalista cristão, anticomunista ferrenho e baba-ovo trumpista.

Em parcos dois meses de gestão, já enfrentamos o ódio à China do chanceler Araújo, o encalhe dos frangos no boicote árabe, Jesus na goiabeira de Damares, Queiroz e a rachadinha do 01, o bandejão de Davos, os brasileiros ladrões de Vélez Rodriguez, o pedido de vídeos de estudantes bradando slogans eleitoreiros e as demissões em série do Ministério da Educação.

Ilustração
Marta Mello/Folhapress

Isso, sem contar a mineração em terras indígenas, o libera geral dos agrotóxicos, o WhatsApp do Bebianno, a demissão de Ilona Szabó, a economia criativa do PSL, a língua solta de Messias sobre as arestas da Previdência, o corte da educação sexual da cartilha de saúde, Olavo de Carvalho chamando Mourão de comunista, a fake news da jornalista do Estadão, Damares culpando a igualdade de gênero pela explosão do feminicídio e... o golden shower.

Assisti ao Twitter da ducha dourada na roça, onde me refugiei do Carnaval na companhia dos familiares. Terminado o xixi ostentação, os olhos dos três universitários presentes, um cursando filosofia, outro economia e o terceiro comunicação, perderam o brilho, num misto de incredulidade e depressão. 

O Brasil se tornou um país indigesto não só para os jovens de periferia, mas também para os ditos privilegiados. Falta esgoto, emprego, segurança, escola, e também razão, senso, decoro, cultura, grandeza, futuro e saída. Piorou muito, mas nunca foi fácil.

Eu ainda não era nascida, quando Jânio tomou um porre e renunciou. Criança, descobri que um presidente podia não bater bem da cachola com o prendo e arrebento de Figueiredo.

De lá para cá, chorei a morte de Tancredo, vi Sarney laçar boi no pasto e Collor travado, com aquilo roxo. Sofri o confisco da maluca da Zélia, testemunhei a queda de Itamar por uma xoxota de camarote, a compra do segundo mandato de FHC, a jura de Lula de que nenhum malfeito era com ele e a dislexia de Dilma subindo a rampa mais de uma vez.

Carioca, enfrentei 16 anos de Garotinhos, seguidos da cleptocracia de Sérgio Cabral. Hoje, vivo numa cidade morta, governada pela dobradinha Witzel-Crivella. A decadência do Rio prova que é impossível blindar a economia de um mau governo.

Witzel fez discurso elogioso a Marielle, na coletiva posterior à prisão dos assassinos suspeitos, esquecido que estava ao lado de Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, políticos do PSL que, após destruírem a placa com o nome da vereadora, juraram “decapitar esses vagabundos do PCdoB, do PT e do PSOL”.

Apesar de moribundo, o Rio exportou a Alerj e o Vivendas da Barra para o Planalto Central.

Para não desesperar, continuo fazendo a cama.

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