Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Minha filha escolheu uma missão para que outras mulheres sejam respeitadas', diz Shantal Verdelho

Em entrevista à coluna, a empresária e influenciadora paulistana que denunciou o médico Renato Kalil por violência obstétrica relembra infância em Rondônia com o pai vendendo cachorro-quente e o acidente que acabou com seu sonho de ser chef de cozinha

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A influenciadora Shantal Verdelho, 33, em entrevista à Folha Marlene Bergamo/Folhapress

De vestido longo azul, cabelos soltos e sem maquiagem, Shantal Verdelho desce as escadas de sua casa de dois andares, na zona sul de São Paulo. São quase 20h da quarta (9) e a empresária e influenciadora digital acaba de amamentar Domenica, de cinco meses, e colocar ela e o irmão, Filippo, 3, para dormir.

A casa com jardim e piscina em que vive com os filhos e o marido, o empresário e ex-modelo Mateus Verdelho, aparece com frequência em seu perfil no Instagram, onde ela faz publicidade de moda, de produtos de beleza, suplementos alimentares etc. para seus 1,7 milhão de seguidores. E também promove suas marcas Zion Swim, de praia, Zion Wine, de vinhos, e Zion Joias. Ela explica que escolheu esse nome Zion porque ele significa "terra prometida", e aparece em uma música de Bob Marley, de quem é fã.

A empresária e influenciadora Shantal Verdelho, 33, em sua casa, em São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

Seu poder de alcance nas redes sociais não é usado apenas para vender produtos. Shantal também promove lives com debates sobre diversos temas. Em 2020, transmitiu uma conversa sobre racismo com a cantora e ativista Preta Ferreira, do MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro). Ficaram amigas, e Preta já elogiou publicamente Shan, como a blogueira é chamada pelos íntimos.

Ser dona da própria moradia era um sonho da paulistana de 33 anos que viveu como classe média alta e estudou em escola suíça, na capital paulista, até os seis anos, quando, conta, a família perdeu tudo com a falência da loja dos pais.

Shantal denunciou o médico Renato Kalil por violência obstétrica - Marlene Bergamo/Folhapress

"A gente teve que se mudar para Porto Velho, em Rondônia, e morar de favor na casa de um primo da minha mãe que era pastor e ofereceu um quarto para a gente. Foi um baque", diz. Lá, o pai montou uma barraca de cachorro-quente que viraria um restaurante, e a mãe vendia produtos da Herbalife. Quatro anos depois, a venda desse negócio permitiu a volta da família para São Paulo.

Durante a adolescência, lembra, ficaram se mudando de casa sempre que as contas apertavam por causa do aluguel. Por isso, diz, está emocionada e feliz por acabar de comprar um apartamento para os pais. "Ainda estou pagando. Mas era o sonho da minha mãe, que nunca teve casa própria."

O médico Renato Kalil, de São Paulo, acusado de violência obstétrica por Shantal Verdelho; outras 18 mulheres também denunciaram o obstetra - Reprodução/Todo Seu no YouTube

Mesmo com o padrão de vida tendo caído muito, conta que os pais deram um jeito para que ela e a irmã estudassem em uma escola de elite, o Lourenço Castanho. "Eles diziam que, além do ensino, era muito importante estudar no lugar em que a gente tivesse uma convivência bacana com pessoas que, no futuro, poderiam nos dar emprego", diz. "E no final das contas deu certo, essas pessoas me ajudaram."

O primeiro trabalho, conta, foi aos 14 anos, na moda, como tradutora de inglês para compradores internacionais que visitavam marcas brasileiras. Depois, virou vendedora de loja até entrar na faculdade de gastronomia. Durante os dois primeiros anos da graduação, estagiou por oito meses no renomado restaurante italiano Due Cuochi. "Queria ser chef de cozinha até que sofri meu acidente e aí não consegui nem completar a faculdade."

Aos 20 anos, Shantal participava de um grande evento gastronômico quando a chapa a gás na qual cozinhava explodiu, e ela ficou em chamas. Teve queimaduras de terceiro grau em 15% do corpo, ficou um mês no hospital e fez quatro cirurgias. "O acidente foi um ponto de mudança grande na minha vida, repensei tudo", afirma. "A gente [ela e a família] apostou tudo naquela faculdade, inclusive o único dinheiro, naquela carreira, e me vi sem nada."

A lembrança da explosão, segundo ela, a tirou totalmente da cozinha, onde entra apenas para preparar coisas básicas. "Hoje fui fazer um ovo pro meu filho e me veio a lembrança [do acidente], sempre vem."

o chef japonês Toshiro Konishi e a influenciadora Shantal Verdelho
Shantal posa com o chef japonês Toshiro Konishi em uma aula da faculdade de gastronomia, em SP - Arquivo Pessoal

Quando conseguiu voltar a trabalhar, virou vendedora da boutique Daslu e depois, da Schutz, de calçados, do empresário Alexandre Birman. Na loja da marca de calçados, sempre que podia ficava um tempo no escritório acompanhando a equipe de marketing. Um dia, conta, tomou coragem e pediu uma chance a Birman.

"Eu não tinha diploma, nada. Mas fiz um plano para marca aumentar a presença em redes sociais, ele me promoveu." Nos sete anos em que trabalhou para a empresa, passou de vendedora a relações públicas, sendo responsável, entre outras coisas, pelo relacionamento com influenciadores até que passou ela mesma a postar dicas de estilo.

Em 2015, quando ainda assinava o nome de solteira Shantal Abreu, virou influenciadora. "Muitas pessoas me julgam por eu ser influenciadora, julgam muito essa profissão, não levam a sério. Desde o começo ela é meio zoada, não tenho outra palavra. As pessoas ridicularizam muito", diz.

"Nas minhas empresas eu vejo o quanto um influenciador alavanca a imagem, as vendas. Consigo mantes minha empresa na mídia sem precisar investir tanto quanto seria necessário num veículo de comunicação tradicional."

A empresária pede licença para ir buscar um casaco e checar se Domenica acordou. "Ela é um presente de Deus. Hoje tomou duas vacinas e não chorou", diz, agora com um roupão verde acinzentado por cima do vestido. Ter filhos, conta, era o sonho do marido, o empresário e modelo Mateus Verdelho, com quem está casada há cinco anos. "Quando a gente ama alguém, o sonho do outro passa a ser o nosso."

O sorriso ao falar da filha desaparece brevemente. "Quando fui entregar a carteira de vacinação dela pra enfermeira, hoje, tava lá o nome dele." "Ele" é o ginecologista e obstetra paulistano Renato Kalil, que Shantal acusa de ter cometido violência obstétrica durante o parto de Domenica, no dia 13 de setembro.

Desde a denúncia, em dezembro, diz ter pesadelos de que está presa no consultório de Kalil. E que tem medo de ir a qualquer médico, de alguém ficar "com medo" de atendê-la ou até querer se vingar. "Outro dia o meu filho caiu na escola, abriu a cabeça e tive que levá-lo ao hospital. Na hora fiquei com medo de encontrar ele lá no Einstein [Hospital Israelita Albert Einstein]."

Shantal diz que não deseja o mal de Kalil, não quer vingança, 'só que nenhuma outra mulher passe pelo que passei' - Marlene Bergamo/Folhapress

Como em sua primeira gestação precisou fazer uma cesariana, Shantal diz que seu sonho era que o segundo parto fosse normal. Por indicação de conhecidas, foi se consultar com Renato Kalil, que era conhecido por realizar partos normais e também permitir que os homens assistissem o momento exato do nascimento da criança.

"Eu e Mateus gostamos da consulta, ele pediu exames, tratou do meu ovário policístico", lembra. Porém, segundo ela, o casal ficava desconfortável quando o ginecologista contava "intimidades" de pacientes famosas. "Mas achei que estivesse só forçando a barra para ficar amigo e ver se um dia eu falaria dele na internet." Esse "feeling", diz, acabou se comprovando.

Quando a gestação de Domenica completou seis meses, a influenciadora entrou prematuramente em trabalho de parto e precisou ficar um mês no hospital. Segundo ela, a conduta de Kalil foi exemplar. "Costumo dizer que o Kalil é uma péssima pessoa, mas um bom médico." Durante a estada no hospital Rede D'Or São Luiz, conta que recebeu um áudio do médico pedindo para que ela fizesse um post enaltecendo o trabalho dele e o atendimento recebido no local.

Na mensagem a qual a Folha teve acesso, Kalil pede que Shantal "faça um favor para o seu médico". Em um trecho, ele diz: "Já manda assim: 'Rede D'Or, tenho visto nos últimos anos o dr. Kalil muito no Einstein, assisto os partos dele. Vocês não podem perder um médico desses, ele tem que ser exclusivo do São Luiz' [...] Dá o tom que você quiser, mas tenta mostrar que é imprescindível a presença do Kalil na maternidade pra coisa funcionar, andar direitinho".

Shantal fez o story, um vídeo que dura 24h, em seu Instagram. "O Mateus brigou comigo quando soube que eu tinha feito. Mas eu tava num lugar de tanta vulnerabilidade, a vida da minha filha tava dependendo 100% dele. Me senti mal, mas fiz."

A defesa de Shantal pediu ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de SP) que Kalil seja proibido de exercer a medicina enquanto a investigação estiver em curso - Marlene Bergamo/Folhapress

A influenciadora afirma não ter feito nenhum tipo de permuta com o médico que lhe permitisse fazer aquele pedido, e que guarda os recibos das consultas de R$ 2.000 e dos R$ 40 mil desembolsados pelo parto. Em seu depoimento à polícia, ela disse ter ouvido de outras pessoas que Kalil estaria tentando concorrer a uma vaga na direção do hospital, daí o pedido. A Rede D'Or diz que o médico, que lá trabalha há 30 anos, "nunca foi cogitado ou convidado para ocupar um cargo na direção" no São Luiz.

Quase dois meses após o nascimento de Domenica, Shantal conta que decidiu ver a gravação do parto feita pelo marido. Foi ali, vendo as imagens, segundo ela, que se deu conta da violência obstétrica que havia sofrido. No vídeo, Kalil diz coisas como "Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha'. Que ódio. Não se mexe, p*rra". E insiste para fazer uma episiotomia, um corte cirúrgico entre a vagina e o ânus para facilitar a saída do bebê, que Shantal recusa.

Shantal, uma mulher branca, está deitada na maca com um lençol por cima, e o médico Renato Kalil, homem branco, está com uniforme verde e máscara facial e touca realizando o parto
O obstetra Renato Kalil realiza o parto da filha da influenciadora Shantal Verdelho no hospital Rede D'Or São Luiz, em setembro de 2021 - Instagram @shantal

A empresária pega o celular para mostrar um trecho do vídeo gravado por Mateus para a repórter, em que o obstetra, diz, "a rasgou", forçando a abertura de sua vagina e puxa Domenica pela cabeça. "Está vendo? Ele não deixou a cabeça da minha filha sair primeiro, como é no parto normal, ele puxa a cabeça dela lá de dentro. E ele também não deixou a placenta sair, retirou com uma pinça."

Ela conta que, com o intuito de alertar outras mães de um grupo de WhatsApp do qual faz parte, encaminhou trechos do vídeo do parto e um áudio em que relatava tudo o que havia acontecido. Um mês depois, o conteúdo foi vazado, e ela formalizou a denúncia contra Kalil e realizou o exame de corpo de delito para averiguar se o procedimento realizado pelo obstetra durante o parto da filha acarretou lesão corporal na vagina.

No depoimento de Shantal à polícia, obtido pela coluna em dezembro, ela também acusa o ginecologista de insistir para que ela fizesse uso do Misoprostol para induzir o parto quando ela estava com 40 semanas de gestação. O medicamento que só pode ser administrado em uso hospitalar, já que pode ser usado como um abortivo, é contraindicado para mulheres que já tenham feito cesárea, caso de Shantal, porque pode provocar ruptura uterina.

Mateus Verdelho filma o nascimento da filha, Domenica, usando uma câmera na cabeça, com Renato Kalil a seu lado; o vídeo do parto está sendo usado como prova para denunciar o médico por violência obstétrica - Instagram/shantal

A influenciadora também disse à delegada que cuida do caso que Kalil realizou a manobra de Kristeller, prática que consiste em pressionar a barriga da gestante para empurrar o bebê e que é contraindicada pela OMS e pelo Ministério da Saúde, porque pode comprometer a saúde da mãe e do bebê. "Não quero acabar com ele, não é vingança. Eu quero que nenhuma outra mulher passe pelo que eu passei, que ele seja punido."

Com a exposição do caso, outras mulheres começaram a procurá-la para também denunciar Kalil. A jornalista britânica Samantha Pearson, correspondente do jornal The Wall Street Journal no Brasil, disse ao jornal O Globo ter passado por episódios traumáticos de assédio moral no consultório do obstetra. Ao "Fantástico", da Globo, uma outra mulher acusou o médico de assédio sexual no ano de 1991. No total, 18 já foram à delegacia —algumas o acusam de suposto assédio sexual.

Kalil nega as acusações. Procurado para comentar as declarações de Shantal, ele não quis se pronunciar.

Shantal no início da carreira de influenciadora, em 2015, em um evento em Trancoso (BA) - Divulgação

Na semana passada, o advogado de Shantal, Sergei Cobra Arbex, solicitou ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) que Kalil seja impedido de praticar a medicina para não colocar outras mulheres em risco.

Ela reclama da morosidade do Cremesp para dar um parecer sobre o caso. "Uma coisa é eu estar num processo policial com o Kalil alegando um crime. Porque aí [é dizer] 'Ah, vamos ver os dois lados, ver se realmente aconteceu'. Não dá mais para colocar em xeque quando 18 pessoas que não se conhecem têm depoimentos parecidos que mostram o modus operandi dele." Procurado, o Cremesp diz que, independentemente da petição, "a decisão de interdição, parcial, total do médico, ou não, é da Câmara de Sindicância" e que ela será tomada no fim do processo sigiloso.

Após a denúncia, a influenciadora diz ter ficado muito abalada emocionalmente e avisou que cancelaria alguns compromissos profissionais e adiaria outros. "Mas depois do Ano-Novo, quando eu soube que ele [Kalil] estava na Bahia na praia, mesmo depois de todas essas denúncias, e eu aqui em casa vivendo esse luto...[era] a impunidade sambando na minha cara. Veio esse senso de responsabilidade, e ressurgi das cinzas", afirma.

Shantal Verdelho com a filha, Domenica - Instagram/shantal

Shantal conta que tem uma rede de apoio para atravessar esse momento: o marido, a família, a fé, alguns amigos e a terapia. Espírita, diz que semanalmente promove o "Evangelho no lar", uma leitura bíblica feita de maneira virtual com a família." E todo dia antes de colocar meus filhos para dormir faço uma oração. É como se fosse uma terapia. Oro pro Kalil e para a família dele", afirma.​ Mas sua maior força para atravessar esse "turbilhão', diz, vem da filha. "Deus foi tão perfeito que me deu a bebê mais sorridente e mais calma."

Ela conta que tenta proteger a menina ao máximo da exposição e que fica imaginando como Domenica vai lidar ao saber a história da chegada dela ao mundo. "Ela pode ser forte ou se vitimizar, ou até se sentir culpada e falar 'minha mãe passou por isso por minha causa'. Mas ela vai saber o que aconteceu. Ela é a menina do parto. Se ela jogar o nome dela no Google, vai aparecer."

Por causa da crença espírita, Shantal diz que Domenica escolheu vir ao mundo naquele parto porque era sua missão. "Para que todas as mulheres que forem parir daqui para frente sejam respeitadas no parto e que saibam que não vão sofrer violência, porque violência é crime. E que se uma pessoa fizer isso, será punida", diz. "A gente não tá ali pedindo favor a ninguém. O Kalil nasceu de um parto e espero que tenha sido respeitoso, que a mãe dele tenha sido bem tratada. É isso que toda mulher espera nesse momento."

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