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Precisamos criar um pacto da negritude

Em resposta ao racismo estrutural, população negra deve se unir para conquistar espaços de poder dos quais foi historicamente excluída

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Aline Odara

Pedagoga, pesquisadora de relações étnico-raciais, candomblecista e idealizadora e diretora-executiva do Fundo Agbara, primeiro fundo filantrópico de mulheres negras no Brasil

Quando estive pela primeira vez em Nova York para representar e abrir caminhos para o Fundo Agbara, em setembro de 2022, tive a experiência de viver 30 dias de encantamento com a cidade. Não foi por causa das luzes da Times Square, do multiculturalismo, da vivacidade do Central Park em tempos de verão, tampouco das luxuosas grifes da Quinta Avenida.

Obviamente não foi pela absurda quantidade de lixo produzido pela cidade que não dorme, acumulados aos metros nas ruas que abrigam sonhos e delírios intensos de consumo capitalista (pelos quais podemos ser facilmente capturados). Essas ruas também abrigam a maior densidade populacional de ratos que já vi, enormes e bem alimentados, que, mesmo de perto, não se intimidam com nossa presença.

A imagem mostra um grupo de mulheres e uma menina em um evento cultural. As mulheres estão vestidas com roupas coloridas e adornos, incluindo turbantes e colares. A menina, que está em primeiro plano, usa um vestido amarelo com flores. As mulheres estão sorrindo e algumas seguram bonecas. O fundo apresenta uma arquitetura de pedra.
Marcha da Consciência Negra, na Avenida Paulista , em 2014 - Marlene Bergamo/Folhapress/Folhapress

Há muitos anos, alimentava o sonho de conhecer o Brooklyn. Veja bem: não era Nova York. Era o Brooklyn. Costumava brincar que esse era meu sonho secreto de neocolonizada. Para mim, o Brooklyn era a Meca negra do Ocidente.

Sabia que encontraria algum segredo, algum insight. Como se aquelas ruas guardassem uma pista que eu só poderia desvendar pisando naquele chão, e, de algum jeito, essa pista facilitaria o meu caminho enquanto mulher negra latino-americana.

Acertei na intuição e errei o lugar. O Brooklyn, de certa forma, me decepcionou pela gentrificação e consequente embranquecimento. Foi nas ruas do Harlem que eu pertenci.

Perdi as contas de quantos "Hey, sista, I love your hair", "You' beautiful, sista", ouvi durante aquelas semanas. Uma aula sobre autoestima negra. Aprendi que, mesmo em meio a divergências, a comunidade negra se celebra. Emocionante.

E foi nos rooftops de Manhattan que vi pessoas negras ascendentes fazendo o que pessoas brancas fazem o tempo todo nesses espaços que concentram poder: pactuando. Espaços de celebração e entretenimento são espaços políticos.

Nesses espaços, convergem-se afinidades, nascem parcerias, e acordos são iniciados ou mesmo firmados. Acordos que beneficiam pares, definem quem pode prosperar e reforçam também quem pode ou não estar no centro das tomadas de decisões.

Pessoas brancas que detêm poderes simbólicos e materiais estão pactuando em todos esses espaços: no beach tennis, no salão, na academia boutique, e por aí vai. Sempre se ouve um "vou passar seu contato para um amigo, vocês têm que conversar".

Foi ali no coração da Big Apple, frequentando happy hours exclusivos para pessoas negras, que me dei conta de que precisamos aqui no Brasil desses espaços que mesclam entretenimento e circulação de poder. Espaços, redes, eventos onde possamos pactuar entre nós, povo negro. Foi ali que pensei, pela primeira vez, na necessidade de um pacto da negritude.

Ações coordenadas entre a população negra a fim de se criar acessos e mitigar consequências do racismo estrutural. Pacto da negritude seria um conceito que se relacionaria com o brilhante pacto da branquitude, da igualmente brilhante Cida Bento, mas em oposição.

Enquanto o pacto da branquitude versa sobre práticas excludentes para a manutenção de privilégios de um grupo racial sobre outro, o pacto da negritude se opõe radicalmente a isso, porque propõe incluir, democratizar e celebrar a população negra historicamente marginalizada. É muito sobre nós mesmos e sobre práticas e filosofias milenares de povos africanos.

Longe de ser um desses pactos romantizados, que sugerem ter que amar, fechar com todas as pessoas negras que encontramos pela frente ou achar que todo mundo é irmão. Pacto da negritude seria estratégia: passar por cima de questões ou divergências pessoais para priorizar o coletivo e possibilitar acessos para outras pessoas negras.

Ainda que não gostemos de determinada pessoa que esteja no meio desse bolo. Se não for assim, se continuarmos a privilegiar um ou outro que se pareça mais conosco, continuará sendo reproduzida a mesma lógica da supremacia branca que garante nossa eliminação dos espaços de poder.

Não é fácil e não vai ser da noite para o dia. Há muita coisa para trabalharmos. Síndromes de negros únicos, auto-ódio, ressentimentos. Mas há que se fazer ou continuar fazendo. E esse termo pacto da negritude é muito poderoso. Adoro conceitos que inspiram práticas.

E aí, bora construir nossas alianças?

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