Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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'Estamos sendo cozidos a vapor,' diz anciã indígena, sobre aquecimento global

Idealizadora de um centro de inovação dos povos originários na Bahia, Yakui Tupinambá critica a lentidão no enfrentamento da emergência do clima e cobra ação do governo e da ONU

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Rosto de indígena; ela tem o semblante sério e usa uma coroa de flores

Yakuy Tupinambá, ativista indígena e idealizadora do Centro de Pesquisa e Inovação Ancestral, a ser construído em aldeia do povo Tupinambá de Olivença, em Una, município vizinho a Ilhéus (BA) Divulgação

São Paulo

Escola viva e útero são nomes escolhidos pela ativista Yakuy Tupinambá para se referir ao Centro de Pesquisa e Inovação Ancestral que idealizou como laboratório de desenvolvimento humano e da biodiversidade no sul da Bahia.

É no território ocupado historicamente pelo povo Tupinambá de Olivença, no município de Una, vizinho a Ilhéus (BA), que a anciã indígena de 63 anos e ativista pela vida, como se define, planta a semente daquela que seria a primeira escola de saberes dos povos originários.

"É uma escola viva que nasce da escuta e de uma percepção de mundo que tem a nossa ancestralidade como base. Precisamos escutar a Mãe Terra", explica Yakuy, que cursou até o quarto ano de direito na Universidade Federal da Bahia.

Idealizado há oito anos, o centro, segundo ela, nasce como um grande útero, capaz de gerar saberes e trocas.

"Trabalho essa proposta com protagonismo feminino. Temos uma parte institucionalizada, uma Organização Social Civil só de mulheres, dentro de um coletivo que tem mais de 60 pessoas."

O projeto da escola ganhou o nome oficial de Útero Amotara Zambelê, em homenagem à líder do Levante Tupinambá, movimento que levou ao reconhecimento do seu povo. Foi Amotara também uma das primeiras a reivindicar a devolução do Manto Tupinambá, em posse do Museu Nacional da Dinamarca.

"Se hoje somos reconhecidos, é por causa dela, Amotara é a nossa mãe na contemporaneidade", reverencia Yakuy, sobre a liderança que morreu em 2008, exemplo para outras vozes femininas que se ergueram na comunidade, entre elas a cacique Jamopoty Tupinambá.

"Estamos reivindicando a regularização, uma luta de nós mulheres que começou no final da década de 1990", explica Yakuy. Em 2002, o povo Tupinambá de Olivença foi oficialmente reconhecido no governo Fernando Henrique Cardoso.

Após estudo antropológico, com escuta dos mais velhos e escavações arqueológicas, começou o processo de demarcação. "São nove fases. Estamos aguardando a portaria declaratória e a homologação. O que se escuta em Brasília é que só falta vontade política", resume a indígena.

O ativismo levou Yakuy ao Parlamento Europeu em 2008 e à ONU em 2022. "Fui a primeira ciberativista indígena", diz ela, sobre a primazia em se abrir para o mundo digital ao criar perfil no Instagram.

Está lá postada sua presença, em setembro de 2022, na 77ª Assembleia da Nações Unidas, a convite do Pacto Global da ONU. "Achei interessante o convite para participar de uma discussão de alto nível com líderes mundiais."

Depois da viagem a Nova York, Yakuy deixa clara sua decepção com os rumos que o mundo vem tomando diante da emergência climática.

Ao participar de encontro com Mary Lawlor, relatora especial da ONU para os Direitos Humanos, numa aldeia Pataxó em Coroa Vermelha (BA), na sexta-feira (12), ela expressou sua angústia. "Aquilo lá em Nova York foi um grande teatro. O que podemos fazer de fato?", indagou a brasileira.

Ciente da distância entre querer e poder, a indígena se preocupa com as notícias nada animadoras sobre aquecimento global e os efeitos das mudanças no clima.

"Eu fico acompanhando o António Guterres. Esse homem está falando sozinho", afirma, referindo aos apelos do português que é secretário-geral da ONU.

Yakuy está conectada à internet e aos desafios globais diretamente das terras onde fincou as raízes do centro de inovação e já recebe visitantes da academia e de empresas para imersões e vivências.

"Hoje, me deparei com uma matéria jornalística que diz que os cientistas concluíram que a humanidade só tem mais dois anos para salvaguardar o planeta", postou ela nesta semana.

Nenhuma novidade para a ativista que alardeia sobre os efeitos das mudanças climáticas, onde quer que vá.

"Estou aqui, próxima ao mar, cercada por rio e manguezais, mas a impressão que tenho é que o planeta foi transformado em um grande cuscuzeiro", relata. "Estamos sendo cozidos a vapor. Construindo nossa própria morte."

Neste 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, prefere não se ater a nomenclaturas. "O antônimo de indígena é alienígena, aquele que vem de fora. Somos todos terráqueos."

Não tivemos escolha para a mestiçagem. Por isso, a gente não aceita termos como mestiço, caboclo. Sou indígena.

Yakuy Tupinambá

ativista do povo Tupinambá de Olivença

A proposta da escola viva, para indígenas e não indígenas, baseia-se em três princípios: troca de saberes, reconexão com a Mãe Terra e descolonização.

Yakuy lista os principais ensinamentos extraídos da cultura indígena: "A compreensão de que fazemos parte de um todo e interagimos. Isso nos dá um entendimento de que ninguém está acima de ninguém. Temos a ensinar essa ideia de horizontalidade, simplicidade e viver coletivo".

E resistência. "Por mais que tenham sido séculos de violações de direitos, é possível encontrar no nosso povo fragmentos da nossa cultura."

Os saberes dos construtores indígenas serão usados na edificação do centro de inovação, concebido por arquitetos da Escola da Cidade, em um projeto orçado em R$ 20 milhões.

Em fase de captação, o complexo comporta cooperativa de pesca, laboratório de fitoterápicos, biblioteca, produtora e editora.

"O centro tem que ser autossustentável. Não falo que preciso de ajuda nem de filantropia para construir esse espaço, porque na minha compreensão cultura e educação são investimentos."

Um processo de resgate da própria história. Yakuy, que em Tupi significa água que se bebe em cuia, foi criada pela avó nascida em Olivença, em 1893. "Nasci numa vila, porque minha mãe já tinha saído da mata."

Nesse período, eram denominados de caboclos de Olivença. "Mas não temos essa leitura de mestiçagem. Por causa do processo de colonização e apagamento, quando se vai buscar a história, é muito estupro", explica Yakuy.

"Não tivemos escolha para a mestiçagem. Por isso, a gente não aceita termos como mestiço, caboclo. Sou indígena."

E como tal, não poupa o governo Lula, cobra mais ações e crítica a atuação do Ministério dos Povos Indígenas, um antigo anseio.

"Vejo tudo isso como um Cavalo de Troia. Não mudou muito. Nas comunidades indígenas, continuam tendo crianças com desnutrição, narcotráfico e o alcoolismo tomando conta e jovens se automutilando e se suicidando."

Ela avalia que o governo deveria estruturar a Funai, para que o órgão cumpra de fato as suas funções.

Yakuy questiona o que considera foco demasiado na Amazônia. "A essência da cultura indígena é de que tudo está interconectado. Se destruirmos os demais biomas, não tem Amazônia, pulmão do mundo, que resista."

A ativista relata os desafios para preservação do que resta de Mata Atlântica na Bahia. "É uma luta contra o turismo predatório e a especulação imobiliária, que chega destruindo os manguezais. E eles são tão importantes quanto a floresta amazônica."

Ela salienta a importância de todos os biomas. "Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Pampas e Amazônia se retroalimentam. É um útero só."

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