Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

Greve dos roteiristas é oportunidade para Hollywood produzir menos e com mais qualidade

Cenário do entretenimento deve voltar ao que existia antes da decolagem do streaming

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The New York Times

Aqui está minha tentativa de resumir o contexto da greve dos roteiristas de Hollywood em três frases.

Primeiro, o negócio do entretenimento, movido a dinheiro fácil e incentivado pelas condições incomuns da era da Covid-19, comprometeu-se com uma expansão insustentável –o grande experimento de streaming, no qual todas as grandes marcas teriam sua própria Netflix.

Então, quando a insustentabilidade desse crescimento ficou evidente, os estúdios e os streamers começaram a espremer cada vez mais de seus roteiristas, em horários mais longos e menos previsíveis e com menos recompensas no longo prazo, mesmo quando os executivos corporativos tinham esperanças de que a inteligência artificial tornasse obsoletas certas funções de escritor.

Nascer do sol no sinal de Hollywood, em Los Angeles - Mike Blake - 6.fev.20/Reuters

Esse contexto faz com que as demandas dos roteiristas pareçam razoáveis e justas, mas também significa que os escribas em greve podem perder enquanto ganham –fazendo concessões em torno de salários e horas de trabalho como um prelúdio para uma contração maior, um colapso no número de programas roteirizados que Hollywood produz.

A questão para aqueles de nós que assistem e escrevem sobre programas de TV e filmes, em vez de criá-los, é o que esse conflito significa para a arte que justifique toda essa disputa comercial.

Uma narrativa vê na greve uma oportunidade de se reconsiderar a maneira mais ampla como Hollywood evoluiu, especialmente a fixação da era Marvel por franquias, recomeços e narração de histórias "pré-vendidas", que são variavelmente atribuídas a uma mentalidade de capital de risco louca por lucros que está dominando Hollywood ou aos efeitos da consolidação no setor cinematográfico.

Contra esse pano de fundo, Matt Stoller, um crítico do monopólio, argumenta que o objetivo dos grevistas deveria ser encontrar aliados na causa de uma grande mudança estrutural –dividir os gigantes corporativos integrados verticalmente, separando produção e distribuição mais uma vez e, assim, tornando a alquimia do filme de orçamento médio mais competitiva com a fábrica de super-heróis.

Uma análise um pouco mais pessimista, oferecida por roteiristas como Sonny Bunch e Jessa Crispin, enfatiza que a estratégia corporativa de exploração de super-heróis evoluiu porque está dando ao público o que ele quer. As pessoas estão comprando ingressos para filmes de histórias em quadrinhos e "Super Mario", aponta Bunch, não para "Air" ou "O Último Duelo".

A cultura de fãs que sustenta esses projetos, argumenta Crispin, muitas vezes parece preferir que seus escritores sejam engrenagens substituíveis. Assim, mesmo que a greve seja uma chance para reconsiderações, provavelmente não é uma alavanca capaz de mudar o sistema como um todo.

Pessoalmente, eu gostaria de ver a greve alavancar um sistema diferente de Hollywood. Mas eu me contentaria com um retorno ao cenário do entretenimento que existia há cerca de dez anos, antes da decolagem do streaming –quando as desvantagens da era das franquias de efeitos especiais no cinema foram compensadas em parte pelo surgimento de uma televisão mais rica, profunda e ambiciosa.

Minha impressão de espectador sobre o que aconteceu desde então é que a expansão do streaming primeiro gerou um excesso bem-vindo de ambição na tela pequena, mas depois sentiu cada vez mais como se estivesse espalhando muito pouco talento criativo, fazendo-o trabalhar demais ou ambos.

Às vezes, os programas do auge da era da TV começam de maneira brilhante, mas têm dificuldade para manter seu dinamismo já na segunda temporada ("Westworld" da HBO, por exemplo, ou recentemente "Yellowjackets", da Showtime). Às vezes, eles funcionam como imitações ralas dos dramas de anti-heróis da década anterior ("Ozark", da Netflix, por exemplo). Ou assumem o caráter de experiência teatral, mas um pouco piores –com franquias grandes demais para falir das quais ninguém realmente gosta ("Obi-Wan Kenobi", digamos, ou "Os Anéis de Poder"). Ou eles exigem muito de um autor talentoso, que é pago cada vez mais para fornecer uma série de conteúdo do que se concentrar numa única história (a evolução de "Yellowstone", de Taylor Sheridan, e seus desdobramentos decepcionantes preenchem este perfil).

Na teoria, o cenário de greve e consequências que esbocei acima –em que os roteiristas ganham melhores condições de trabalho e salários mais altos, mas o número total de contratos de programas diminui conforme as plataformas de streaming fecham ou se fundem– poderia trazer algum tipo de solução para esse problema da propagação fina demais.

Isso poderia gerar um mundo no qual o talento da sala de roteiristas é mais bem remunerado e mais concentrado, em que os produtores e roteiristas não têm tantas oportunidades de construir impérios, mas os programas que eles fazem são melhores por isso. Obviamente, não é o resultado que o sindicato espera, porque significaria menos empregos de redator. Mas, para o espectador, um mundo com menos programas também pode ser um mundo com programas melhores.

O cenário mais sombrio, porém, é que qualquer contração do streaming pode se combinar com uma imitação intensificada na televisão do modelo de franquia de tela grande. Nesse caso, poderíamos ter cada vez mais sucessos de bilheteria como uma aposta aparentemente segura, mas sem criatividade, ao mesmo tempo em que perderíamos alguns dos experimentos fortuitos do pico da TV –como o feliz acidente de "The White Lotus", cujo drama de resort surgiu como uma forma de cinema no isolamento durante a Covid, ou o brilhantismo de "Andor", filme tipo "Guerra nas Estrelas" sem marca nem Baby Yoda.

Se você se importa com originalidade, esse é o verdadeiro cenário de perder enquanto se ganha nesta greve: os roteiristas acabam com uma parte mais justa de uma indústria que se distancia mais da criatividade.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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