Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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EUA serão testados em 2º ano assustador da Guerra da Ucrânia

Putin se dispôs a tornar Rússia menos segura para satisfazer ambições tradicionais de poder

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The New York Times

A invasão russa da Ucrânia está perto de completar um ano, e a seguinte pergunta precisa ser respondida: como se explica que em 23 de fevereiro de 2022 praticamente ninguém nos EUA estava argumentando que era de interesse nacional fundamental entrar numa guerra indireta com a Rússia para impedi-la de invadir o país que a maioria dos americanos nem conseguiria localizar num mapa?

No entanto, hoje, quase um ano mais tarde, as pesquisas indicam que a maioria sólida dos americanos (se bem que essa maioria vem diminuindo levemente) está a favor de que Washington forneça armas e assistência à Ucrânia, apesar de isso criar o risco de um conflito direto com a Rússia de Vladimir Putin.

Soldados ucranianos disparam contra forças russas na região do Donbass
Soldados ucranianos disparam contra forças russas na região do Donbass - Aris Messinis - 15.jun.22/AFP

É uma mudança espantosa de postura na opinião pública americana. Com certeza ela se explica em parte pelo fato de que não há forças de combate americanas na Ucrânia. Assim, a impressão é de que os EUA estão arriscando armas e recursos, enquanto o peso total da guerra é carregado pelos ucranianos.

Mas há outra explicação, embora seja uma que a maioria dos americanos talvez não consiga articular e com a qual muitos concordariam com relutância. Eles sabem que o mundo em que vivemos hoje é como é devido ao poderio americano. Isso não quer dizer que sempre usamos nosso poder de maneira sábia nem que poderíamos ter realizado o que realizamos sem aliados. Mas, desde 1945, enquanto usamos nosso poder com prudência e em conjunto com nossos aliados, construímos e protegemos uma ordem mundial liberal que nos tem favorecido tremendamente, tanto econômica quanto geopoliticamente.

A defesa dessa ordem liberal é a razão subjacente que levou os EUA e seus aliados na Otan, a coalizão militar do Ocidente, a ajudar a Ucrânia a reverter a invasão de Putin –o primeiro ataque frontal violento de um país da Europa contra outro desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Vamos agora à má notícia. O primeiro ano desta guerra tem sido relativamente tranquilo para os EUA e seus aliados. Washington pôde enviar armas, assistência e inteligência, além de impor sanções a Moscou, enquanto os ucranianos realizavam o resto, atingindo o Exército de Putin gravemente e repelindo suas forças para o leste da Ucrânia. Acho que o segundo ano da guerra não será tão fácil.

Em meu livro "The Lexus and the Olive Tree", argumentei que a explosão maciça de comércio e conectividade local teve um papel importante nessa era incomumente pacífica, mas também que "a mão oculta do mercado nunca vai funcionar sem um punho cerrado oculto: o McDonald's não pode crescer sem a McDonnell Douglas, fabricante do F-15". Alguém precisa manter a ordem e implementar as regras.

Penso que esse papel dos EUA será posto à prova agora mais que em qualquer momento desde a crise dos mísseis, em 1962. Será que Washington ainda está preparado para desempenhar esse papel?

Há um livro que situa esse desafio em um contexto histórico mais amplo. Em "The Ghost at the Feast: America and the Collapse of World Order, 1900-1941", o historiador Robert Kagan argumenta que, sejam quais forem as possíveis propensões isolacionistas dos americanos, a verdade é que a maioria deles tem sido a favor da utilização do poderio para moldar uma ordem liberal que manteve o mundo inclinado a sistemas políticos abertos e mercados abertos, em mais lugares, de mais maneiras e por mais tempo.

Telefonei a Kagan e perguntei por que ele enxerga a Guerra na Ucrânia não como algo com o qual nos deparamos por acaso, mas como a extensão natural desse arco descrito pela política externa americana há mais de um século. As respostas de Kagan vão tranquilizar alguns e incomodar outros, mas é importante termos essa discussão no momento em que ingressamos no ano 2 desta guerra.

"Em meu livro", disse Kagan, "cito um trecho do discurso do Estado da União feito por Franklin Roosevelt em 1939. Num momento em que a segurança dos EUA não estava ameaçada –Hitler ainda não invadira a Polônia, e teria sido quase impossível cogitar a queda da França—, Roosevelt insistiu que há momentos ‘em que os homens precisam se preparar para defender não apenas seus lares, mas também os alicerces de fé e humanidade nos quais se fundamentam suas igrejas, seus governos e sua própria civilização’".

Mas por que apoiar a Ucrânia não só é do nosso interesse estratégico como se alinha a nossos valores? "Os americanos lutam continuamente para conciliar interpretações contraditórias de seus interesses –uma que enfoca a segurança interna e outra voltada à defesa do mundo liberal fora da América", disse.

Os teóricos das relações internacionais, acrescentou Kagan, "nos ensinaram a enxergar ‘interesses’ e ‘valores’ como coisas distintas, com a ideia de que para todos os países os ‘interesses’ –ou seja, preocupações como segurança e bem-estar econômico— necessariamente pesam mais que os valores".

"Mas não é assim que as nações se comportam. Desde a Guerra Fria a Rússia tem desfrutado de maior segurança em sua fronteira ocidental do que em quase qualquer outro momento, mesmo com a expansão da Otan. No entanto, Putin se dispôs a tornar a Rússia menos segura para satisfazer as grandiosas ambições tradicionais de poder de seu país, mais ligadas à honra e identidade que à segurança."

A mesma coisa parece se aplicar ao líder chinês, Xi Jinping, em relação a Taiwan. Mas é interessante notar que um número crescente de republicanos, pelo menos na Câmara e na Fox News, não se rendem a esse argumento, enquanto um presidente democrata e seu Senado, sim. Como isso se explica?

"Os debates sobre política externa americana nunca são só sobre política externa", respondeu Kagan. "Os chamados ‘isolacionistas’ dos anos 1930 eram na grande maioria republicanos. O maior medo, ou ao menos era o que diziam, era que Roosevelt conduzisse o país ao comunismo. Logo, em questões internacionais eles tendiam a ser mais favoráveis às potências fascistas que aos democratas liberais".

"Assim, não surpreende que hoje tantos republicanos conservadores nutram simpatia por Putin, que enxergam como um líder da cruzada antiliberal global." Há também muitas vozes entre a esquerda, porém, que perguntam, justificadamente: vale a pena correr o risco de uma Terceira Guerra Mundial para expulsar a Rússia do leste da Ucrânia? Será que já não ferimos Putin tão gravemente que ele não vai tentar alguma coisa como a Guerra na Ucrânia no futuro? Não será hora de fechar um acordo sujo com ele?

Como desconfio que essa pergunta estará no centro de nossa discussão de política externa em 2023, pedi a Kagan que lançasse a discussão. "Qualquer negociação para deixar as forças russas instaladas em solo ucraniano não passará de uma trégua temporária antes de Putin lançar sua próxima tentativa", disse ele.

"Putin está no processo de militarizar a sociedade russa completamente, mais ou menos como Stálin fez na Segunda Guerra. Ele está engajado nisso no longo prazo e calcula que EUA e Ocidente vão se cansar diante da perspectiva de um conflito prolongado. Que os EUA são falhos e às vezes usam seu poder de modo imprudente, isso não se discute. Mas se você não puder encarar a questão sobre o que aconteceria se os EUA não interviessem no exterior, não está tratando essas questões difíceis com seriedade."

Tradução de Clara Allain  

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