Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Descrição de chapéu The New York Times

Como Biden poderia evitar que Netanyahu transforme Israel em Hungria ou Turquia

Ações do premiê ofendem os valores americanos, e coalizão faz do país um reduto de fanatismo iliberal

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The New York Times

Se eu pudesse fazer chegar à mesa do presidente Joe Biden um memorando sobre o novo governo israelense, sei exatamente como começaria:

Caro presidente, não sei se o senhor se interessa pela história judaica, mas a história judaica com certeza está interessada no senhor hoje. Israel está prestes a passar por uma transformação histórica: converter-se de uma democracia plena em algo menor e de uma força estabilizadora na região em uma desestabilizadora. O senhor talvez seja o único em condições de impedir o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e sua coalizão extremista de converterem Israel num reduto de fanatismo iliberal.

Também diria que receio que Israel esteja se aproximando de um conflito civil interno sério. Conflitos civis raramente ocorrem em função de apenas uma política pública. Eles tendem a dizer respeito ao poder.

Por anos as discussões acirradas travadas sobre os Acordos de Oslo envolveram políticas, mas hoje o enfrentamento diz respeito ao poder: a quem pode dizer a quem como viver numa sociedade diversa.

O premiê Binyamin Netanyahu coloca um bilhete nas fendas do Muro das Lamentações, em Jerusalém - Gil Cohen-Magen - 1º.jan.23/AFP

A história resumida é a seguinte: um governo ultranacionalista e ultraortodoxo formado depois de o grupo de Netanyahu vencer a eleição por uma maioria minúscula (30 mil votos, em um total de 4,7 milhões) está conduzindo uma tomada do poder que a outra metade dos eleitores enxerga como sendo não apenas corrupta, mas uma ameaça a seus direitos civis. Foi por isso que um protesto antigoverno de 5.000 pessoas no fim de semana cresceu e acabou atraindo 80 mil.

O país que Biden conheceu está desaparecendo, e um novo está emergindo. Muitos ministros são hostis aos valores americanos e quase todos o são ao Partido Democrata.

Netanyahu e o titular de Assuntos Estratégicos, Ron Dermer, conspiraram com republicanos para que o premiê fizesse um discurso no Parlamento em 2015 contrariando a vontade e as políticas de Biden e do então presidente Barack Obama. Eles gostariam de um republicano na Casa Branca e prefeririam o apoio de cristãos evangélicos ao de judeus liberais. Preferem o apoio de MbS (o príncipe saudita Mohammed bin Salman) ao de AOC (a deputada americana Alexandria Ocasio-Cortez).

Que não restem dúvidas. O presidente não se deve deixar enganar pelo discurso banal deles sobre "nosso velho amigo Joe". A crise atual em Israel pode ser apresentada a Biden como uma questão constitucional interna sobre a qual não deve opinar. Pelo contrário. Biden deveria intervir (como fez Netanyahu), pois o resultado tem consequências diretas para os interesses de segurança nacional dos EUA.

Não nutro a ilusão de que o americano consiga reverter as tendências mais extremistas que estão emergindo em Israel, mas ele pode dar um empurrãozinho para conduzir as coisas para um caminho mais saudável e possivelmente impedir que aconteça o pior. Tem condições de aplicar um pouco de disciplina bem intencionada, de maneira que nenhum outro ator externo poderia.

A crise mais urgente é a seguinte: tribunais israelenses, liderados pela Suprema Corte, têm em grande medida atuado como defensores ferrenhos dos direitos humanos, em especial dos das minorias —que incluem cidadãos árabes, LGBTQIA+ e até judeus reformistas e conservadores que almejam a mesma liberdade e os mesmos direitos de prática religiosa dos quais desfrutam ortodoxos e ultraortodoxos.

Além disso, pelo fato de a Suprema Corte fiscalizar as ações do Executivo, incluindo as Forças Armadas, ela tem frequentemente defendido os direitos dos palestinos, como a proteção contra abusos por parte de moradores de colônias israelenses e a desapropriação ilegal de propriedade privada de palestinos.

Mas este governo Netanyahu quer alterar radicalmente a situação na Cisjordânia, de modo a anexá-la concretamente, sem declarar o fato oficialmente. E há apenas um obstáculo grande que se opõe ao plano: a Suprema Corte e as instituições legais de Israel.

Conforme resumiu o Times of Israel, a reforma judicial que Netanyahu pretende aprovar a qualquer custo pelo Knesset "daria ao governo o controle total sobre a nomeação de juízes", substituindo o processo de nomeação muito mais profissional e menos partidário. Também limitaria fortemente "a capacidade de a Suprema Corte de derrubar legislação" —especialmente uma que possa reduzir os direitos das minorias— e possibilitaria ao Knesset, agora controlado por Netanyahu, "relegislar" o que a corte tivesse rejeitado.

A reforma também visa reduzir a independência de órgãos fiscalizadores de cada ministério. Em lugar de se reportarem ao procurador-geral, passariam a ser nomeados pelos ministros.

Em suma, o Executivo assumiria o controle do Judiciário. É algo que segue diretamente os moldes da Turquia e da Hungria, em especial quando se considera mais uma coisa: tudo está sendo feito num momento em que o próprio Netanyahu é julgado por acusações de suborno, fraude e quebra de confiança, em três ações movidas pelo procurador-geral que ele mesmo indicou.

No início deste mês, um direitista ex-ministro da Defesa e ex-chefe do Estado-Maior do Exército, Moshe Ya’alon, escreveu que as reformas judiciais de Netanyahu trouxeram à tona "as verdadeiras intenções de um réu criminoso disposto a atear fogo ao país e seus valores [...] para escapar do banco dos réus".

"Quem teria acreditado que menos de 80 anos depois de o Holocausto se abater sobre nosso povo seria estabelecido em Israel um governo criminoso, messiânico, fascista e corrupto cuja finalidade é resgatar um criminoso acusado?" Claro que Netanyahu diz que suas intenções não poderiam ser mais diferentes. Deus o livre.

Pelo fato de não ter uma Constituição formal, Israel é regido por um conjunto muito complexo de freios e contrapesos legais que evoluíram ao longo das décadas. Especialistas me disseram que há argumentos a favor de algumas mudanças no Judiciário, mas fazer isso como Netanyahu está fazendo —não por meio de uma convenção nacional apartidária, mas com a Suprema Corte sendo destituída de poderes pelo governo mais radical na história do país, sabendo que o processo criminal contra ele pode acabar sendo decidido pela Suprema Corte... Isso fede.

Em termos americanos, seria como se Richard Nixon tentasse ampliar a Suprema Corte, inserindo juízes favoráveis a ele durante a investigação do escândalo de Watergate.

A atual presidente da Suprema Corte israelense, Esther Hayut, declarou na semana passada que a reforma "vai quebrar o sistema judicial e é na prática um ataque irrestrito". Grupos de pilotos aposentados da Força Aérea, executivos de tecnologia, advogados e juízes aposentados —de esquerda e direita—, incluindo alguns da Suprema Corte, todos assinaram cartas dizendo basicamente a mesma coisa.

Os EUA deram a Israel ao longo dos anos quantidades extraordinárias de assistência econômica, inteligência sensível, os armamentos mais avançados e apoio virtualmente automático contra resoluções enviesadas nas ONU. Sou a favor. Além disso, o país se opõe há anos a qualquer ação legal por parte de instituições internacionais, com base no argumento de que Israel possui um sistema judiciário independente que —não sempre, mas muitas vezes— impôs com credibilidade as normas de direito internacional sobre governo e Exército, mesmo que isso significasse proteger os direitos dos palestinos.

Antes que Netanyahu consiga submeter a Suprema Corte de Israel a seu controle, Biden precisa lhe dizer, sem dar margem a dúvidas:

Bibi, você está passando totalmente por cima dos interesses e valores americanos. Preciso que você me diga algumas coisas agora —e você precisa ouvir algumas coisas de mim. Preciso saber: o controle de Israel sobre a Cisjordânia é uma questão de ocupação temporária ou uma anexação emergente, como defendem membros de sua coalizão? Porque não serei o bode expiatório. Preciso saber se você vai realmente submeter os tribunais israelenses à sua autoridade política de uma maneira que aproxime Israel da Turquia e da Hungria, porque não serei o bode expiatório disso. Preciso saber se seus ministros extremistas vão mudar a situação vigente no monte do Templo, porque isso pode desestabilizar a Jordânia, a Palestina e os acordos entre Israel, Emirados Árabes e Bahrein —e isso realmente prejudicaria os interesses dos EUA. Não serei o bode expiatório disso.

Veja como eu imagino que Netanyahu responderia:

Joe, Joey, meu velho amigo, não me pressione sobre tudo isso agora. Sou o único que está segurando esses malucos. Você e eu, Joe, podemos fazer história juntos. Vamos unir nossas forças não apenas para barrar a capacidade nuclear do Irã mas para ajudar —como for possível— os manifestantes que estão tentando derrubar o regime dos aiatolás em Teerã. E vamos, você e eu, fechar um acordo de paz entre Israel e Arábia Saudita. MbS vai topar, desde que eu consiga convencê-lo a dar garantias de segurança e armamentos avançados à Arábia Saudita. Vamos fazer isso, e aí então eu me livrarei desses malucos.

Aplaudo as metas de política externa, mas não gostaria que, para pagar por elas, os EUA fizessem vista grossa para o putsch judicial de Netanyahu. Assim, semearemos vento e colheremos tempestade.

Israel e EUA são amigos. Mas hoje uma das partes nessa amizade —Israel— está mudando seu caráter fundamental. Da maneira mais afetuosa, mas sem deixar margem a dúvidas, Biden precisa declarar que essas mudanças violam os interesses e os valores dos EUA e que nós não seremos os idiotas úteis de Netanyahu. Não ficaremos apenas sentados em silêncio.

Tradução de Clara Allain

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