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A carne é forte, mas seu futuro é nebuloso

Objeções éticas, sanitárias e ambientais ameaçam reputação da pecuária brasileira

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São Paulo

Um terço do PIB brasileiro está atrelado a setores com futuro duvidoso: petróleo (13%, segundo a ANP, Agência Nacional do Petróleo) e agropecuária (21%, de acordo com a CNA, Confederação da Agricultura e Pecuária).

São ícones do atraso, que nos renderam o pior governo da história. O primeiro, com a Lava Jato, e o segundo, com a mentalidade colonial bolsonarista.

O petróleo tem prazo para se tornar obsoleto, dentro de duas ou três décadas. Os combustíveis fósseis serão deslocados da matriz energética em favor da eletricidade produzida por fontes renováveis de geração, pois não cabe mais carbono na atmosfera.

Da agropecuária se espera mais, que o Brasil vá alimentar o mundo. Mas aqui se pratica a maneira menos inteligente de fazê-lo, destruindo florestas e glorificando a carne bovina —proteína animal mais insustentável que existe, apesar do peso considerável na economia.

O faturamento com abate de bois e vacas aparece em segundo lugar na produção rural, com R$ 140 bilhões em 2020. Perde só para a soja e seus R$ 176 bilhões. No entanto, boa parte da safra dessa leguminosa e do milho (terceiro lugar) se destina a ração para gado; além disso, o quarto produto do ranking também cabe à pecuária —de leite.

Em contraste, 8% dos brasileiros se declaram vegetarianos. É uma proporção similar à do país líder na Europa, Itália (10%), e dos vice-campeões Reino Unido, Alemanha e Áustria (9%); nos Estados Unidos são 5%.

A tendência a abrir mão da carne parece galopar, sobretudo entre jovens.

Razões para abster-se de proteína animal há várias. Saúde, antes de mais nada: o consumo regular de carnes vermelhas e processadas está associado com risco aumentado de doença cardíaca, tumores de cólon, diabetes e pneumonia.

Há quem rejeite esses alimentos por motivos éticos, como a preocupação com bem-estar animal. Bastam imagens e informação sobre granjas industriais de porcos e galinhas ou abatedouros de bovinos para revirar o estômago de qualquer um.

Nos mercados internacionais, e até no doméstico, cresce a atenção para o impacto ambiental da pecuária do Brasil. Trata-se, afinal, do maior exportador de carne bovina do planeta (22% do total).

Alguns dos maiores frigoríficos do mundo, multinacionais nascidas aqui, tentam a custo livrar-se da pecha justificada de destruidores da biodiversidade amazônica e fornalhas do aquecimento global. Neste último caso, pela emissão de gases do efeito estufa com a queima de florestas (dióxido de carbono) e com a digestão de celulose no rúmen de vacas e bois (metano).

O desmatamento tem como motor principal a grilagem, ou seja, a ocupação ilegal de terras públicas, e a derrubada em propriedades acima do permitido por lei. Nas duas frentes, o corte raso serve para abrir terreno para gado.

Em seguida, terras desmatadas podem acabar vendidas a agricultores para plantio, mas é comum também os pastos serem degradados pela pecuária extensiva (até 80% estariam nessa situação) ou mesmo abandonados. Em ambas as situações, renova-se a demanda pela abertura de áreas virgens.

O desmatamento, sozinho, responde por 44% das emissões de gases do efeito estufa no Brasil, e a criação de bois tem forte influência nisso. A contribuição ruralista para a crise climática, contudo, vai além da queima de florestas.

A atividade agropecuária representa 28% da poluição climática produzida no Brasil, mesmo sem contar o desmatamento. E a maior parte disso provém da fermentação entérica, ou seja, do metano emitido no que se convencionou chamar de arroto das vacas.

O Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa) calcula que 72% das emissões brasileiras de gases do efeito estufa se originam no setor rural. Não seria descabido concluir que a pecuária nacional, em geral de baixa produtividade, merece a fama de vilã ambiental.

A alternativa factível não está na substituição de rebanhos pela produção de carne artificial em laboratório (ou mesmo imitações de origem vegetal, "plant-based", embora essa seja uma opção para muitos consumidores). Eis aí um tipo de gambiarra tecnológica ("technological fix") tão fantasiosa quanto livrar-se do aquecimento global pondo em órbita titânicos guarda-sóis.

Mais racional seria melhorar a produtividade e o manejo do gado no país, que exibe lotação de apenas cerca de uma cabeça por hectare (10 mil metros quadrados).

Só com recuperação de pastagens, rotação de piquetes para diminuir pisoteio e integração lavoura-pecuária-floresta seria possível dobrar a eficiência da pecuária bovina.

Haveria benefício triplo. Primeiro, cairia a demanda por terras, liberando áreas para agricultura sem necessidade de desmatamento. Depois, com abate mais precoce, diminuiria a emissão de metano.
Por fim, com mais biomassa no solo, aumentaria o sequestro de carbono que de outro modo chegaria à atmosfera.

O fato é que a pecuária de corte não vai sumir tão cedo, embora seja possível prever o aumento da pressão de mercados internacionais por carne "verde", ou seja, produzida em condições ambientais aceitáveis.

O Brasil só teria a ganhar avançando nessa direção: menos devastação, menores emissões, mais eficiência, custos reduzidos, reputação melhorada, recursos hídricos preservados etc.

Fala-se muito, na banda modernizada do agronegócio, em agricultura de baixo carbono. Não seria preciso derrubar um hectare sequer para seguir aumentando as safras para alimentar o mundo, prometem os ufanistas.

Apesar dessa conversa, o desmatamento continua aumentando na Amazônia e fora dela sob Jair Bolsonaro. A banda atrasada do setor rural, na qual mandam grileiros e pecuaristas, vai passando a boiada no Congresso e fora dele, indiferente aos danos para o próprio negócio, à saúde da população e ao clima do planeta.

Se o setor não se mostrar capaz de acertar o passo com o tempo, de pouco valerá a agropecuária compor mais de um terço do PIB, tornar-se o quarto maior exportador do mundo, absorver um terço da força de trabalho e sustentar o saldo da balança comercial.

O petróleo está aí para mostrar que nenhuma hegemonia dura para sempre.

O caderno especial Cadeias Alimentares contou com apoio do Instituto Ibirapitanga

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