Descrição de chapéu Cadeias Alimentares

Expressão 'comida de verdade' se populariza, mas desperta controvérsia na periferia

Quem prepara a própria refeição escolhe melhor e resiste mais ao apelo dos produtos práticos

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São Paulo

Seja por gosto, necessidade, moda ou crise sanitária, mais pessoas retomam as rédeas de suas refeições em casa —e se tornam agentes da ‘‘comida de verdade’’.

Chefs e especialistas ligados a esse conceito vêm dando visibilidade a questões que ameaçam a alimentação saudável: a falta de acesso a ingredientes frescos, o avanço de ultraprocessados e a vulnerabilidade de regiões periféricas —onde o termo comida de verdade desperta controvérsia.

A expressão não era conhecida há 20 anos ou mais, quando a apresentadora e autora Rita Lobo começou a se dedicar à alimentação. O ponto de virada para seu uso, diz ela, foi o momento em que a oferta de "imitação de comida" passou a ser tão grande quanto a de comida de verdade —entendida como aquela que é feita com alimentos que vêm da natureza, sem substâncias que não são encontradas na cozinha de uma casa.

Prato branco com massa italiana com molho de tomate com manjericão, cercado de dois pratos de salada com folhas diversas, pimentão e grãos
No Campo Limpo, bairro periférico no extremo sul de São Paulo, o restaurante Organicamente Rango e o Armazém Organicamente tentam ampliar o acesso a alimentos naturais na região; - Foto: Karime Xavier / Folhapress

"Uma pessoa que não esteja em contato com o conceito de ultraprocessados não percebe o quanto consome desde a manhã. O pão de forma, o requeijão, o suco de caixinha, o capuccino com pozinho...". Rita se refere a produtos que passam por muitas transformações e usam conservantes, corantes e saborizantes para ganhar atratividade e durar mais tempo na prateleira.

Brasileiros vêm consumindo mais desses alimentos nos últimos 15 anos, mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares mais recente, divulgada pelo IBGE no ano passado.

Desde que lançou o site Panelinha, Rita Lobo começou a acompanhar a relação do público com a comida. No início, os pedidos eram "receitas de bolo mais saudável, com adoçante". Com o tempo, as solicitações foram mudando: de diet, a moda passou a ser receita light, depois tinha que ser tudo integral, sem glúten e, por fim, sem lactose, diz Rita.

"Nessas duas décadas assisti de camarote como a indústria pauta o entendimento das pessoas em relação à alimentação saudável."

Em seus programas, a apresentadora costuma repetir que saber cozinhar é mais que seguir receitas: é ter autonomia. Com isso, o cozinheiro está menos suscetível a pegadinhas. "Quando você se distancia da cozinha, perde capacidade de fazer escolhas, não sabe diferenciar o que é comida de verdade do que é só alguém tentando vender o produto da moda. Ter ligação com o preparo dos alimentos é uma coisa profunda."

Alimentos dispostos no Armazém Organicamente, localizado no Campo Limpo, bairro periférico no extremo sul de São Paulo
Alimentos dispostos no Armazém Organicamente, localizado no Campo Limpo, bairro periférico no extremo sul de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Comidas simples e afetivas, como salada de chuchu, estão entre os posts de maior sucesso no blog da nutricionista Neide Rigo. Essas receitas, diz, despertam a memória de um público que as reconhece, mas não aprendeu a cozinhar com os mais velhos. "Tem uma geração que não sabe distinguir uma acelga de um almeirão, mas sabe o que é sal do himalaia. Por isso, compartilho minhas receitas: vou encontrar eco", afirma.

A partir dos anos 1980 e 1990, passou a ser notada uma contradição na alimentação dos brasileiros, afirma o professor Carlos Monteiro, coordenador do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde), da USP.

Enquanto se compravam cada vez menos ingredientes de preparo culinário (temperos e óleo), os teores de gordura, sal e açúcar das compras aumentavam, assim como a predominância de doenças relacionadas a eles.

"As populações estavam substituindo as preparações culinárias por alimentos prontos para o consumo, como biscoitos, comida congelada e refrigerantes, todos ultraprocessados", afirma o professor.
As causas são complexas, mas incluem a incorporação das mulheres no mercado de trabalho, que acumularam emprego e tarefas caseiras.

Segundo dados mais recentes do IBGE, mulheres dedicaram quase o dobro de horas semanais com afazeres domésticos e cuidados com pessoas do que os homens em 2019. Vendidos sob apelo de praticidade, os ultraprocessados são associados a risco de doenças cardiovasculares, obesidade e diabetes, embora a Abia, entidade que reúne a indústria brasileira de alimentos, questione essa ligação.

O termo comida de verdade se popularizou fazendo frente a esse quadro, afirma Monteiro. Por isso, a Nova, classificação brasileira que agrupa alimentos por grau de processamento, recomenda que eles sejam evitados nas refeições. O ideal seriam pratos com base em alimentos in natura ou minimamente processados.

A Nova é um dos pilares do Guia Alimentar para a População Brasileira, cuja edição mais recente foi publicada pelo Ministério da Saúde em 2014. Serve de referência para políticas de alimentação saudável, inclusive fora do país.

No ano passado, o Ministério da Agricultura enviou à pasta da Saúde uma nota tentando desqualificar o Guia: afirmava, entre outros pontos, que menções à classificação Nova deveriam ser retiradas das recomendações. Em carta à ministra Tereza Cristina, 33 cientistas de países como EUA, Reino Unido, Chile e Canadá rechaçaram o pedido.

"Foi um lobby mal sucedido, o Guia resiste", diz Paula Johns, socióloga e diretora da ONG ACT Promoção da Saúde. O site da entidade abriga uma petição para aumentar os tributos de bebidas açucaradas, sob o argumento de que a redução de consumo poderia ajudar a prevenir doenças.

"Estudos mostram que são produtos artificialmente baratos, recebem subsídios do estado, e geram um custo em saúde enorme", diz Johns.

Além da tributação, a entidade luta para restringir a publicidade de produtos ultraprocessados, em especial para o público infantil, e para que os rótulos tragam informações claras. "Se você mora na periferia, não tem oferta de comida fresca e fica horas no transporte público, a indústria está aí para vender praticidade", acrescenta Johns.

A inflação dos alimentos e a crise causada pela pandemia têm dificultado o acesso de populações periféricas a frutas, legumes e verduras, na opinião de Thiago Vinícius de Paula da Silva, à frente do restaurante Organicamente Rango e do Armazém Organicamente, no Campo Limpo, extremo sul de São Paulo.

Muitas famílias, afirma ele, perderam o poder de escolha nos supermercados. "Você compra arroz e feijão, que têm a capacidade de alimentar mais pessoas. E diminui as compras no sacolão", diz.

Responsável por festivais e uma agência cultural na periferia, Thiago começou a atuar em 2017 com a democratização do acesso a alimentos orgânicos na região, oferecendo preços mais acessíveis no seu armazém, obtidos com a compra direto de produtores.

Thiago Vinícius de Paula da Silva, produtor, ao lado da mãe, a cozinheira conhecida como Tia Nice
Thiago Vinícius de Paula da Silva, do restaurante Organicamente Rango, ao lado da mãe, cozinheira conhecida como Tia Nice - Karime Xavier / Folhapress

Na pandemia, ele viabilizou, com apoiadores, a doação de 25 mil cestas básicas e 35 mil marmitas na região.

A expressão comida de verdade pode provocar desconforto na periferia, ressalva ele. "Uso esse termo com muito cuidado, porque as populações nas regiões periféricas sabem comer. Mas, às vezes, a comida de verdade daquele dia vai ser um miojo."

Para Adriana Salay, historiadora e pesquisadora da fome no Brasil, a questão para as camadas mais pobres não é só o fornecimento, mas a capacidade de compra. "Aí é que a política pública entra como mecanismo que pode promover boas práticas e aumentar o acesso dessas famílias a alimentos frescos."

Como exemplo, ela menciona a implementação de sacolões com preços populares promovida por Luiza Erundina (1989 -1992) quando foi prefeita de São Paulo.

Sem centros de distribuição públicos e fora da rota de entrega de grandes empresas de alimentação, moradores de favelas têm de criar suas próprias estratégias para garantir acesso à comida, diz Mariana Aleixo, líder do projeto Maré de Sabores, integrado ao Redes da Maré, movimento comunitário que atua em diferentes frentes nas 16 favelas da Maré, no Rio de Janeiro.

"Talvez a presença de ultraprocessados seja uma alternativa nesse sentido, de ter comida no prato para quem é negligenciado pelo estado. Não é uma crítica, mas quando a gente fala comida de verdade é preciso ter uma gama de acessos e informações para contemplar isso" , diz.

Na Maré, explica Mariana, ultraprocessados têm uma logística mais barata, podem ser estocados e vendidos ao longo de muitos meses, ao contrário dos ingredientes in natura, que precisam de fornecimento semanal —o que os torna mais caros e com diversidade reduzida.

"Comida de verdade é um desejo nos espaços de favela, mas a gente precisa de políticas para realizar isso. Uma delas é ter mais creches, para o estado dividir responsabilidades com as mulheres", diz.

O caderno especial Cadeias Alimentares contou com apoio do Instituto Ibirapitanga

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