De sobras a fios quebrados, macarrão 'à brasileira' leva de tudo e se repete por gerações

No Dia do Macarrão, chefs comentam ingredientes e preparos que não existem na Itália, mas são populares país afora

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São Paulo

Levante a mão quem nunca se regalou com uma travessa de macarrão de forno bem cremoso, cheio de ingredientes, gratinado sob uma montanha de queijo ralado. Ou com uma boa salada de gravatinha ou parafuso, misturada com atum em lata, legumes e um tantão de maionese.

Neste 25 de outubro, Dia Internacional do Macarrão, é bem provável que uma boa parcela dos brasileiros comemore desse jeito mesmo —sem pasta de grano duro cozida al dente nem molho italiano autêntico.

Macarrão de comitiva, nascido nas tropas de peões do Pantanal, feito com espaguete quebrado e frito - Divulgação

Apresentado às massas pelos imigrantes, o brasileiro não fez cerimônia. Ao longo dos anos, foi transformando os preparos, adaptando ingredientes e inventando formas de consumo que deixam qualquer italiano de cabelo em pé.

Chegamos a receitas tão brasileiras que fica difícil enxergar nelas algum sotaque italiano, além da massa em si. É o caso das inúmeras variações de macarrão de forno, que por aqui têm status de comida de festa —em 2021, a ferramenta Google Trends registrou um pico na busca por essas receitas entre 19 e 25 de dezembro.

Há também o macarrão montado em assadeira de furo, que mescla ingredientes como requeijão, frango desfiado e presunto picado. Depois de assada, a receita é desenformada como um bolo e recebe até enfeites no topo.

Macarrão cozido em panela de pressão? Também temos.

No YouTube, vídeos que mostram como é prático juntar a massa com os itens do molho, e cozinhar tudo junto por alguns minutos, acumulam milhares de visualizações –642.800 no caso do vídeo postado pelo influenciador Mohamad Hindi em 2020.

"Hoje é o dia em que a italianada chora...", ele provoca na abertura do vídeo, antes de começar a preparar a receita que leva linguiça fresca, carne moída e tomate pelado.

Interessante notar que várias dessas receitas abrasileiradas fazem parte do repertório de famílias dos próprios imigrantes que vieram da Itália.

Bisneta de italiana, a chef Heloísa Bacellar cresceu no interior de São Paulo e tem vivo na memória o sabor do macarrão de forno que a avó preparava. Levava molho branco, presunto e muçarela em tirinhas.

"Ela montava o macarrão no pirex, cobria de queijo parmesão de pacotinho e assava. Depois, cortava em quadrados e deixava na geladeira. A gente comia frio, no lanche da tarde."

Criada na roça paulista, a chef Mara Salles, do restaurante Tordesilhas, também tem sangue italiano. Mas a mãe dela, Encarnação Salles, a Dona Dega, cozinhava a massa à moda caipira.

"Lembro do macarrão tingido com colorau, que fazia as vezes do tomate. Aos domingos, era servido com frango de panela: a ave no centro da travessa, a massa em volta. Na Semana Santa, o clássico era o macarrão com refogadinho de tomate e sardinha em lata, os peixes arrumados com capricho para que não desmontassem. E toda sopa também levava macarrão", conta a chef, que publicou a receita da sopa de feijão com macarrão ave-maria no livro "Ambiências – Histórias e Receitas do Brasil" (editora DBA).

Outra descendente de imigrantes italianos, a paulistana Maria Stella Ferrari cresceu almoçando a massa artesanal preparada pelas tias, em bonitos rituais domingueiros que sempre começavam um dia antes.

Na casa dela, porém, a rotina apertada em função dos três filhos exigia receitas mais práticas –como o talharim de forno, cujos fios iam esticadinhos para a assadeira, em camadas, intercalados com dois molhos, branco e de tomate, mais queijo e presunto fatiados.

"Era o macarrão do desespero, que eu fazia quando não tinha mais o que inventar", brinca.

Delegado da Accademia Italiana della Cucina em São Paulo, o italiano Gerardo Landulfo conta que o macarrão de forno também aparece em seu país –mas de outra maneira.

"É um recurso para aproveitar as sobras, assim como a frittata di pasta, feita com ovos. Mas nunca leva tantos ingredientes. Só no Brasil é comum usar tudo o que tem na geladeira."

Os primeiros pastifícios paulistanos, no fim do século 19, colaboraram para que o macarrão deixasse de ser um prato artesanal, que exigia tempo e experiência, e se tornasse um alimento rápido e prático para o dia a dia.

São dessa época o Massas Christofani, de 1878; a Fábrica de Massas Adolpho Selmi, de 1887 (ainda em funcionamento, fabricante das marcas Renata e Galo); e o Pastifício Fratelli Secchi, de 1896.

A massa de grano duro levou um século para chegar por aqui e permanece restrita a uma pequena parcela dos consumidores –pouco mais de 2%, concentrados especialmente nos grandes centros. No Brasil profundo, o macarrão que impera ainda é o comum, que pode conter ovos ou sêmola e nunca fica al dente.

Também resiste o hábito de comprar o espaguete comprido, de coloração mais escura, que vem embalado em papel. Uma das marcas mais conhecidas é a Liane, fundada em 1963, em Presidente Prudente (SP).

Os fios têm cerca de 50 cm e não cabem em panela alguma, o que ajuda a explicar outro hábito arraigado entre brasileiros e execrado pelos italianos –o de quebrar o macarrão na hora de cozinhar.

"Minha avó costumava fazer um caldo de frango e cozinhar o macarrão dentro dele. Ia quebrando a massa e jogando lá dentro, porque não tinha panela grande em casa", conta Mara Salles.

A massa quebradinha é base de uma receita típica do centro-oeste, o macarrão de comitiva, nascido nas tropas de peões do Pantanal.

Segundo o chef e pesquisador Paulo Machado, o espaguete quebrado deve ser frito, junto com a carne-seca, antes de ser cozido em água. "São poucos temperos, alho e salsinha. A consistência lembra a de um risoto."

De todos os abrasileiramentos impostos ao macarrão, no entanto, o que mais se afasta das tradições italianas certamente é o hábito de colocar a massa no prato, ao lado do feijão com arroz, da carne e da salada.

Dos botecos paulistanos aos restaurantes simples do interior, é assim que a massa (quase sempre espaguete cozido) aparece nos PFs – e sai para passear nas marmitas. Nada mais brasileiro.

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