Descrição de chapéu

Biografia de Anthony Bourdain é sobre a vida, mas também muito sobre a morte do chef

Autor parece forçar a barra ao centrar em desventura amorosa a causa do suicídio do cozinheiro americano

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Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico e colunista de turismo da Folha, é apresentador do programa de TV "Comida É Arte" no canal Travel Box Brazil

Down and Out In Paradise: The Life of Anthony Bourdain

  • Preço US$ 14.99 (ebook em inglês), 320 páginas
  • Autor Charles Leerhsen
  • Editora Simon & Schuster

Em outubro passado, foi lançada nos Estados Unidos, ante grande expectativa, a mais nova biografia do chef e apresentador de TV norte-americano Anthony Bourdain (1956-2018), intitulada "Down and Out In Paradise: The Life of Anthony Bourdain", do jornalista Charles Leerhsen.


Com o enorme sucesso de sua última série televisiva ("Parts Unknown", surpreendente recordista de audiência da rede CNN), Bourdain catapultara sua fama crescente ao nível de uma celebridade mundial. E, no auge da fama, aos 61 anos, matou-se no interior da França, onde gravava um episódio de seu programa.

Anthony Bourdain em cena do documentário 'Roadrunner' - Divulgação


Há algo de macabro no livro. Ele é sobre a vida, mas também muito sobre a morte do chef. O autor teve acesso aos últimos movimentos da vida privada de Bourdain, mapeando seu computador e seu celular, franqueados pela sua ex-mulher.

Ficamos então sabendo —como realçado pela divulgação que antecedeu o lançamento— de seu ódio pela fama e pelos fãs, seu vício em heroína, seu consumo de esteroides injetáveis, dos sites de prostitutas que visitou pouco antes de sua morte, e no mesmo dia, da última comunicação com sua namorada, a atriz italiana Asia Argento, que lhe diz para deixá-la em paz e cuidar da sua vida.


Este namoro vinha sendo bastante tumultuado, assunto para muita manga se o objetivo for enxerir-se na vida pessoal de ambos. Argento, menos ilustre como atriz do que como figura de proa do movimento #MeToo, parece possessiva e sufocante para um apaixonado mas sempre inseguro e torturado Bourdain.

Ainda assim, o autor parece forçar a barra ao centrar nesta desventura amorosa a causa do suicídio de Bourdain.


Ok, ele estava sofrendo. Mas, ao mesmo tempo, tinha âncoras poderosas para mantê-lo com os pés na terra —como o estupendo sucesso profissional e financeiro, e uma filha que se aproximava da adolescência. Aí a namorada dá um fora, e você se enforca num banheiro de hotel... sei.

Milhões de pessoas perdem seus empregos, seus amores, seus filhos, obviamente sofrem, mas daí a se matar vai uma grande distância. É mais provável que a maioria dos que chegam a este extremo sejam impelidos por depressão e sofrimentos psíquicos e químicos, não apenas por um fato específico.

Bourdain era uma pessoa perturbada, e o interesse maior do livro está em acompanhar como a trajetória desta figura conturbada não impediu seu sucesso profissional. Para quem não o conheceu de perto, pode ser surpresa que ele fosse antipático, irascível, folgado, grosseiro, o que transparece em vários relatos do livro.

Para mim, que estive com ele algumas vezes, nada disto é surpresa.


O fato também revelado de que seus livros (e séries) contenham invenções travestidas de realidade, tampouco. Mas daí vem boa parte de sua graça.

Afinal, se é tão comum usar mentiras e exageros para enfeitar positivamente a vida dos chefs, no estilo "Chef’s Table", por que não usar o mesmo estratagema para revelar, ainda que dando tons ficcionais, o lado negro da força?

Eu sempre disse (sem provas...) que o livro que o lançou ao estrelato (e o tirou de uma carreira apagada como chef), "Kitchen Confidential", lançado em 2000 e que virou best-seller graças a chocantes "revelações" sobre o funcionamento de uma cozinha profissional, era cheio de invenções e exageros.

Mas, ainda assim, nunca deixei de deleitar-me e recomendar o livro, escrito com faca afiada e temperos picantes.


Aliás, o livro mostra que desde muito jovem Bourdain amava escrever, e, já quando trabalhava como cozinheiro, escrevia histórias policiais. Não sei seus contos de mistério, mas a julgar por seus livros de gastronomia e viagem, é óbvio que ele escrevia muito bem e foi um grande contador de histórias. Além de frasista ferino e rápido no gatilho.


Tímido, amargurado, mas também grosseiro e arrogante. Deste coquetel explosivo de emoções Anthony Bourdain conseguiu destilar uma obra que encantou milhões em todo o mundo, e já sobrevive ao seu angustiado criador.

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