Mel de abelhas nativas conquista chefs e entra em receitas doces, salgadas e drinques

Ácido e complexo, produto tem preço alto, o que ainda é barreira para aumento do consumo

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Abelhas sem ferrão da espécie mirim-guerreira Eugenio Basile

São Paulo

Elas são pequeninas, inofensivas —porque não têm ferrão— e viraram estrelas no universo da alta gastronomia. Cada espécie, e há 244 catalogadas no Brasil, produz um tipo diferente de mel, cuja complexidade tem encantado os chefs de cozinha.

Mais líquidos do que o mel da abelha Apis Mellifera, aquela de origem europeia e temperamento mais zangado, os meles (ou méis, ambas os plurais estão corretos) das abelhas nativas brasileiras são ácidos, menos doces, e devem ser armazenados na geladeira, pois fermentam rapidamente.

Indivíduo da espécie jataí pousa em flor - André Matos

O que têm de gostosos têm de raros. Uma colmeia das espécies mais produtivas não fabrica mais do que dois quilos por ano, contra os 25 quilos anuais das colmeias de Apis Mellifera.

O volume de mel, armazenado em estruturas ovaladas de cera e própolis que lembram microbarris, é tão reduzido que a extração tem de ser feita com seringa.

Isso explica o preço salgado: potinhos pequeninos, com apenas 40 gramas (o equivalente a duas colheres de sopa), custam a partir de R$ 28, mas podem passar fácil dos R$ 100 no caso das espécies mais raras.

Tornar esses méis mais conhecidos do grande público e, quem sabe, fazer o preço baixar em função da demanda maior é um dos objetivos do livro "67 Receitas Com Mel de Abelhas Nativas", que será lançado no sábado (17), no Mercado de Pinheiros, das 14h às 17h, no box do Instituto Atá do Mercado Municipal de Pinheiros (R. Pedro Cristi, 89, Pinheiros).

As receitas, assinadas por 49 chefs, confeiteiros e mixologistas, vão dos tira-gostos aos drinques e passeiam por méis de todos os biomas brasileiros.

Aprende-se, por exemplo, a preparar o peixe com cítricos da chef paranaense Manu Buffara, eleita a melhor chef mulher pelo 50 Best América Latina 2022 —o prato leva mel de manduri, abelha sulista que só dá as caras entre os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul.

Já a tapioca de beterraba do chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, é regada com mel de tubuna, abelha pretinha que se espalha por vários estados, de norte a sul.

Para o drinque rainha, à base de cachaça, o bartender Jean Ponce, proprietário do Guarita Bar, escolheu o mel da minúscula jataí, um dos mais fáceis de encontrar, por estar entre os mais produzidos país afora.

Também tem receita para o café da manhã. A chef Paola Carosella ensina o preparo de leite dourado com cúrcuma, adoçado com mel de abelha borá, enquanto Bela Gil escolheu o mel de jandaíra para turbinar seu mingau de aveia com coco ralado e banana-da-terra.

Editado pelo Instituto Atá, cujo presidente é o chef Alex Atala, o livro não tem fins lucrativos —a versão impressa com capa dura será vendida por R$ 73,50, mas qualquer um poderá fazer o download gratuito a partir do dia do lançamento no site www.institutoata.org.br.

Produtor colhe mel com seringa - Eugenio Basile

Um dos organizadores da publicação e uma das maiores autoridades do país no assunto, o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, 40, reconhece que o aumento de demanda é projeto de longo prazo, já que o brasileiro come muito pouco mel, mesmo considerado o tipo mais comum.

"O consumo per capita é de 170 gramas por ano, enquanto os alemães consomem três quilos por ano", compara.

Mas ele festeja o fato de que as abelhas nativas, aos poucos, estão furando a bolha dos estudiosos e chef de cozinha mais engajados.

"Vejo que o mundo dos abelhudos cresce exponencialmente, gente interessada em criar abelhas como pet. Há diversos grupos de WhatsApp e Facebook e muitos perfis de criadores no Instagram. O que era coisa de matuto do sertão está virando pop."

Cenário bem diferente de oito anos atrás, quando o casal Eugênio e Márcia Basile fundou a Mbee Mel de Terroir e passou a divulgar os méis de abelhas nativas.

"Quando eu chegava aos restaurantes como vendedor, não me recebiam. Passei então a ir como cliente. Comia e, só depois, chamava o chef e apresentava os produtos. Além do Alex Atala e do Alberto Landgraf [atual chef do restaurante Oteque, no Rio de Janeiro], ninguém tinha ouvido falar no assunto", lembra Eugênio.

Hoje, os potinhos da Mbee embalam a produção de 65 meliponicultores —como as abelhas nativas pertencem ao grupo científico Meliponini, esse é o nome que se dá aos criadores. Eles se espalham por 13 estados e produzem méis de 14 diferentes espécies.

"Os meles que vendemos são fotografias dos biomas que as abelhas vão tirando", Eugênio poetiza.

Os amazônicos, ele emenda, representam um universo ainda mais rico e pouco explorado. Já faz parte do portfólio da Mbee o mel da abelha Duckeolla ghilianii, originária do Amazonas —conhecida como policial, ela protege outras abelhas dos predadores e produz um mel de alta acidez, com notas cítricas. Mas há muito mais a conhecer na região.

No Congresso Amazonense de Meliponicultura, realizado em setembro, em Manaus, Eugênio foi apresentado a 34 méis de abelhas amazônicas, sendo que três delas sequer foram catalogadas.

"Provei um que era doce e também salgado, uma piração. Já estou até acostumado aos meles amargos, mas salgado, nunca tinha visto."

O livro do Instituto Atá traz uma lista de 16 fornecedores, nas cinco regiões do Brasil. E nem é preciso sair da capital paulista para conhecer um deles.

No extremo sul da cidade, nos arredores de Parelheiros, os irmãos Andrea e Carlos Barrichello, fundadores da Beeliving, mantêm uma criação com oito espécies na propriedade da família.

Os méis, assim como os biocosméticos, sabonetes e velas à base de mel e própolis, são vendidos pelo e-commerce próprio —embalado em garrafinha com rolha de vidro, que parece frasco de perfume, o mel de tiúba, jandaíra ou mandaçaia sai por R$ 60, com 60 gramas.

Além de bater ponto em feiras de produtores artesanais, os Barrichello agendam visitas e experiências no sítio, para grupos e empresas. "É importante que as pessoas conheçam as abelhas nativas, porque muita gente ouve falar em abelha e só pensa no medo do ferrão", justifica Andrea.

Como acontece em outros setores envolvidos na produção artesanal de alimentos, a legislação brasileira não estimula os criadores. Desde 2017, os produtos das abelhas nativas são reconhecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), mas nem todos os estados criaram seus regulamentos técnicos.

"Além disso, caímos naquela questão estrutural, de exigências voltadas ao modelo industrial. Só se regulariza quem tem alto poder de investimento", chia Jerônimo. "Com uma produção em maior escala, acredito que o preço poderia cair pela metade."

Onde comprar

Beeliving – www.beeliving.com.br

Mbee – www.lojambee.com.br

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