Quando o conceito de 'profissionalismo médico' é insuportavelmente vago

Segundo especialistas, a falta de um consenso de o que consiste em profissionalismo entre médicos abre brecha para perseguição de médicos negros

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Rachel E. Gross
The New York Times

Quando o estudante de medicina Joel Bervell pensava sobre profissionalismo médico, ele pensava na famosa série de TV "Grey's Anatomy". Especificamente, ele pensava sobre como os residentes no programa eram esperados a ser, mas frequentemente não eram pontuais, preparados para seus casos e respeitosos com todos ao seu redor.

"Essa era a única referência que eu tinha do que significava ser um médico —especialmente alguém como eu, que não vem de uma família de médicos", disse Bervell, 28 anos, um estudante de medicina do 4º ano na Universidade Estadual de Washington, nos Estados Unidos. Bervell, americano de origem ganense, é um dos primeiros estudantes de medicina negros na faculdade de medicina, que abriu em 2017.

O debate sobre o que é profissionalismo no meio médico pode ser tão abrangente desde a forma como se veste até ações consideradas como ativismo e perseguição de estudantes negros, dizem especialistas - Ojima Abalak/The New York Times

Desde o momento em que os estudantes entram na faculdade de medicina, eles são instilados com o conceito de profissionalismo médico: sua responsabilidade sagrada de se comportar com os valores de uma profissão que é concedida confiança automática na sociedade. "É a primeira coisa que te dizem: Você agora é literalmente um profissional médico", disse Bervell.

A mesma métrica pode ser usada para determinar se um estudante de medicina se torna um médico de fato.

A partir do terceiro ano, Bervell e seus colegas aprenderam que seriam avaliados regularmente por seu comportamento profissional, juntamente com outros atributos, como habilidades de comunicação. Membros do corpo docente, funcionários e outros estudantes também podem apresentar preocupações específicas sobre o profissionalismo de um indivíduo, resultando em advertências, cujo conteúdo poderia ser anexado aos seus registros permanentes, seguindo-os como cartas escarlates.

O problema, como muitos estudantes de medicina também aprenderam, é que se o termo "profissional" é vago, "não profissional" é ainda mais. Dependendo de quem faz a avaliação, comportamento não profissional pode significar abraçar o diretor do programa, deixar aparecer a alça do sutiã, usar tranças, vestir um maiô no fim de semana ou usar uma camiseta "Black Lives Matter" (em referência ao movimento de apoio à causa negra que se alastrou pelo mundo após a morte de George Floyd) na sala de emergência.

Como resultado, o profissionalismo existe em dois níveis, como um padrão elevado de comportamento e uma lista (às vezes literal) de coisas a fazer e não fazer que borram ética e aparência. Esse segundo significado pode ser particularmente pernicioso para estudantes da faculdade de medicina negros, disse Adaira Landry, uma conselheira na Escola de Medicina da Universidade de Harvard e coautora de um artigo recente em um jornal sobre a "superpoliciamento" de residentes negros.

O artigo, publicado no The New England Journal of Medicine, se soma à crescente literatura que documenta as maneiras como residentes não brancos são disciplinados ou empurrados para fora da medicina. De 2015 a 2016, 20% dos estagiários demitidos de sua residência eram negros, embora os estudantes negros representem apenas 5% dos residentes, de acordo com dados não publicados do Conselho de Acreditação para Educação Médica de Pós-Graduação.

Para estudantes que não cresceram na cultura da medicina ou não se assemelham a uma noção ultrapassada do que um médico deve parecer (branco, masculino, de elite), essas regras opacas podem apresentar um campo minado.

"O ambiente é tão restritivo do que é permitido que quando você se comporta, parece ou fala de forma diferente, parece que é não profissional", disse Landry.

Entre os estudantes minoritários com quem Landry trabalha e que estão enfrentando probação ou demissão, ela viu um fio comum. "Nunca tive um aluno me procurar dizendo que está sendo expulso por causa de uma nota acadêmica", disse ela. "O tema predominante é que são conflitos interpessoais, rotulados como desafios de profissionalismo."

Do código de ética ao código de vestimenta

Os ideais elevados que Bervell encontrou em seu primeiro dia estão mais alinhados com a forma como o profissionalismo foi originalmente concebido, disse David Leach, que atuou como diretor executivo do conselho de 1997 a 2007.

Na época, a medicina estava em uma encruzilhada. Grandes empresas estavam comprando consultórios individuais e transformando-os em empreendimentos lucrativos. Segundo os médicos, o tempo que passavam com os pacientes diminuía, enquanto os pacientes viam a qualidade do atendimento declinar.

"Havia uma percepção pública crescente de que os médicos eram como qualquer outra pessoa: eles estavam apenas procurando ganhar dinheiro", disse Matthew Wynia, um médico estudando a ética do cuidado gerenciado durante esse período. "O medo era de que nosso senso de profissionalismo estivesse se perdendo."

Em resposta, o conselho se propôs a definir um conjunto de competências gerais, na forma de resultados mensuráveis que um residente precisava demonstrar antes de avançar na jornada para se tornar um médico.

Das seis competências que o conselho estabeleceu, o profissionalismo era o que mais se aproximava do cerne do que significava ser um médico. O profissionalismo também foi a competência mais vaga da lista. A definição de 1999 caracterizava o profissionalismo como "um compromisso em cumprir responsabilidades profissionais, adesão a princípios éticos e sensibilidade a uma população diversificada de pacientes".

Também se esperava dos médicos demonstrar uma série de atributos em cada interação, incluindo compaixão, respeito, humildade, integridade e responsabilidade.

Os diretores de residência reclamavam que, em comparação com coisas como cuidados com o paciente e conhecimento médico, o profissionalismo era vago e difícil de medir. As preocupações se resumiam a "Eu sou um diretor de programa muito ocupado, então o que diabos eu devo fazer?" lembrou Leach.

O problema da vaguidade nunca desapareceu, disse Deborah Powell, ex-decana executiva da Escola de Medicina da Universidade de Kansas, que estava no conselho na época. Nos anos 2000, as conversas sobre o que constituía profissionalismo médico muitas vezes se reduziam a focar em códigos de vestimenta. "Ausência de barbas e pelos; cabelos curtos; mulheres deveriam usar saias eram alguns dos exemplos", disse Powell. "Era uma loucura. Fomos longe demais."

Essas conversas ainda estão acontecendo hoje. Londyn Robinson, agora residente na Universidade Duke, aprendeu a segunda definição de profissionalismo em 2020. Enquanto procurava dicas sobre como se candidatar a residências, ela se deparou com um artigo no periódico científico Vascular Surgery intitulado "Prevalência de Conteúdo Não Profissional nas Redes Sociais Entre Jovens Cirurgiões Vasculares".

Os autores vasculharam as contas de redes sociais de 500 estagiários de cirurgia e classificaram-nas quanto ao profissionalismo sem o conhecimento deles. Pela definição dos autores, conteúdo potencialmente não profissional incluía fotos de residentes segurando bebidas alcoólicas, usando fantasias de Halloween ou "posando de forma provocativa em biquínis e roupas de banho".

Para Robinson, que é a primeira de sua família a obter um título de Doutor em Medicina, o artigo revelou que, para alguns, o profissionalismo havia sido reduzido a atributos superficiais em vez de comportamento ético com os pacientes. "Basicamente, eles disseram em voz alta o que pensavam", disse ela.

Um novo ideal

Como Robinson aprendeu, o profissionalismo agora irradia além da clínica ou sala de aula. Os instrutores de Bervell o alertaram sobre as consequências das redes sociais: por que os estudantes de medicina representavam a profissão o tempo todo, eles disseram, ser um profissional significava pensar duas vezes antes de falar online sobre política ou questões polêmicas como o aborto.

Bervell não seguiu esse aviso. Durante a pandemia de Covid, ele começou a fazer vídeos no TikTok apontando viés racial em ferramentas médicas como o oxímetro de pulso e testes de função pulmonar — ambos menos precisos para pacientes não brancos, segundo estudos— ganhando o apelido de "desmistificador médico". Seus vídeos foram adicionados aos programas de escolas de medicina, receberam elogios da Associação Médica Americana e lhe renderam um lugar na Mesa Redonda de Líderes de Saúde nas Redes Sociais da Casa Branca.

Pelos padrões de sua própria escola, Bervell disse que seu ativismo nas redes sociais poderia ser visto como não profissional. Mas, ele acrescentou, ele via desafiar as gritantes disparidades raciais na saúde como parte de seu papel em mudar a medicina —e, talvez, oferecer aos médicos algo melhor do que "Grey's Anatomy" como modelo de como ser um profissional.

A vaguidade do profissionalismo pode representar um desafio não apenas para estudantes negros, mas para qualquer pessoa que não se encaixe no estereótipo tipicamente associada a um médico. Robinson observou que as pessoas sendo julgadas por seus trajes de banho no artigo do Vascular Surgery eram mais frequentemente mulheres do que homens.

Em 2020, indignada com o artigo, ela postou uma foto de si mesma com um top de biquíni e shorts no X, anteriormente Twitter, com a hashtag #MedBikini. "Vou dizer: eu uso biquínis. Vou ser médica", escreveu Robinson. No dia seguinte, sua postagem viralizou e o artigo foi formalmente retratado.

Em um pedido de desculpas, os editores da revista reconheceram que "o profissionalismo foi historicamente definido por e para homens brancos e heterossexuais e nem sempre reflete a diversidade de nossa força de trabalho ou de nossos pacientes."

À medida que o rosto da medicina muda e plataformas como TikTok e X transformam a maneira como o conhecimento médico é compartilhado, os arquitetos originais do profissionalismo ainda acreditam que os princípios centrais do termo permanecerão centrais para a medicina.

Para Leach, a definição é simples.

"Você é perspicaz e diz a verdade?" ele disse. "Você coloca os interesses do paciente à frente dos seus? E está desenvolvendo sabedoria prática que pode incorporar a melhor ciência com os detalhes deste paciente em particular para chegar a uma decisão clínica criativa? Se você está fazendo essas três coisas, então você é profissional."

Ele acrescentou: "E um código de vestimenta está muito longe dessas três coisas."

Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times.

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