Descrição de chapéu Entrevistas históricas

Após 15 anos no exílio, Paulo Freire concedeu à Folha sua primeira entrevista

Em 1979, a jornalista Ione Cirilo, amiga de Freire, conversou com o intelectual

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São Paulo

No início de 1963, o pedagogo e filósofo Paulo Freire, professor da Universidade do Recife, foi junto a um grupo de universitários para a pequena cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte.

Angicos desde então se tornou marco para a educação no Brasil e no mundo. Lá, o método de alfabetização de Freire foi implantado pela primeira vez. Em um período de 40 horas, 300 adultos foram alfabetizados nos círculos de cultura promovidos pelo pedagogo.

mural na parede da escola com desenho de paulo freire e a frase "em nenhum lugar do mundo onde estive fui mais tocado do que aqui e agora"
Sala de aula na Escola Estadual Professor José Rufino, em Angicos (RN), onde em 1963 foi aplicado o método de Paulo Freire que alfabetizou 300 pessoas em 40 horas - Jarbas Oliveira - 15.jan.2020

O pioneirismo do método de Freire transcende a rapidez de sua eficácia —reside, sobretudo, no protagonismo dado ao universo cultural e vocabular de cada educando que, longe de ser apenas um reprodutor de cartilhas, é agente de seu próprio processo de aprendizagem.

Nascido em Recife (PE), em 1921, Freire começou a atuar como educador popular em 1947, como diretor de educação e cultura do Sesi (Serviço Social da Indústria de Pernambuco). Foi ainda nesse período que ele começou a desenvolver seu método, o primeiro voltado especificamente para a alfabetização de adultos.

Um ano após a experiência bem sucedida em Angicos, quando ocorre o golpe militar de 1964, Freire é acusado de subversão e preso por 72 dias. Como muitos intelectuais da época, o pedagogo deixou o Brasil ao sair da prisão.

"De repente a vida ficou em suspenso", conta a jornalista Ione Cirilo, em entrevista ao projeto Folha, 100. Ela integrou os círculos de cultura do pedagogo e, por trabalhar com cultura popular, também teve de se esconder do regime militar.

Para ela, Freire foi alvo da ditadura pelo mesmo motivo que é hoje alvo do bolsonarismo: seu "método revolucionário e único no mundo", além da "ignorância, no sentido de desconhecimento, como era na época do golpe”.

Freire, ela lembra, se identificava como um "intelectual cristão". Pacífico, ele nunca fez "chamados para a rua".

"Seu método não aponta nem para a direita, nem para a esquerda", afirma Cirilo, "é simplesmente alfabetização. O método aponta para o mundo, para a cultura”, sendo esta última a palavra-chave em todos os espaços em que o trabalho foi aplicado.

“O método era elaborado a partir do universo comum dos educandos, das palavras que juntavam todo mundo", explica.

Quando Freire e sua família retornam ao Brasil, em 1979, a Folha pediu que Cirilo entrevistasse seu professor e velho amigo. A entrevista é a primeira concedida pelo pedagogo depois do exílio –vale notar que a conversa, entre amigos, não seria publicada pelo jornal atualmente, segundo as normas do projeto editorial vigente, que não incentiva amizade entre jornalista e fonte.

“O objetivo da entrevista era receber o Paulo que estava chegando. Eu queria apresentá-lo ao Brasil, esse que ele reencontrava e onde com certeza teria um papel relevante". A entrevista de Cirilo é, assim, um encontro entre amigos, mas também um encontro entre Freire e um novo país, que começava a caminhar rumo à democracia.

Ao longo da conversa, Freire fala das aplicações de seu método no exterior, da saudades que sentia do Brasil, em especial do Recife, e relembra momentos marcantes de sua experiência em Angicos.

Ele é autor de obras importantes como "Pedagogia da Esperança" (1992) e "Pedagogia do Oprimido" (1970), que sistematiza seu método de alfabetização e a 'pedagogia da libertação', oposta à ideia de que alunos são receptáculos vazios, à espera de que um professor os preencha.

Ao contrário, para Freire, cada aluno e professor em sala detém uma bagagem de saberes que deve ser fonte de troca, diálogo e, portanto, aprendizado recíproco e contínuo.

paulo freire tem uma longa barba branca e usa óculos, ele gesticula e olha para o lado
O educador Paulo Freire (1921-1997), autor de "Pedagogia do Oprimido" e criador do método de alfabetização que entende o aprendizado como forma de transformação política e cultural - Sérgio Tomisaki - 07.dez.1988/Folhapress

Paulo Freire é referência mundial na pedagogia. Em 2016, ao analisar mais de um milhão de programas de estudos de universidades anglófonas, uma pesquisa da Open Syllabus mostrou que "Pedagogia do Oprimido" é o 99º trabalho mais citado nesses currículos, sendo Freire o único brasileiro a compor a lista de cem autores.

A Escola de Economia de Londres, pouco tempo depois, revelou que o mesmo livro é o terceiro mais citado mundialmente na área de ciências sociais.

Freire foi eleito patrono da educação brasileira em 2012, 15 anos após sua morte, em 1997.

A Folha republica a agora a conversa entre Freire e Ione Cirilo, como parte da série Entrevistas Históricas, que integra os projetos especiais do centenário da Folha, a ser celebrado em fevereiro de 2021.

*

Paulo, amigo velho, a gente não pôde se abraçar na tua saída. Mas eu não podia deixar de te abraçar nessa volta. E venho pra retomar o papo que ficou parado em Recife há tantos anos. Me conte: chegando ao Brasil, quando desceu do avião, como é que foi? Ou até quando sobrevoava e começou a ver a terrinha lá de cima?
A emoção começou muito antes. Começou, por exemplo, quando numa certa tarde de setembro de 1964 eu ouvi o comandante de uma companhia boliviana de aviação, que fazia o percurso São Paulo-La Paz, advertir os passageiros que estávamos saindo do Brasil. E eu, um pouco timidamente, um pouco assustadamente, um pouco não sei quê, olhei de cima e vi um verdume enorme. E disse a mim mesmo: "Está se acabando, pelo menos agora, durante muito tempo, a minha visão física do Brasil". Por isso digo que talvez a emoção tenha começado ali, no momento da saída. A saída cutucava a volta! Nem sei se esse verbo ainda existe por aqui.

Claro que existe. Alguns verbos não foram exilados não.
Pois bem, a saída sugeria a volta, o retorno.

E você nem podia pegar naquele verdume, guardar um bocadinho.
Não, não! Era um verde longe... Evidentemente que nesses 15 anos as palavras desse comandante de vez em quando voltavam a mim. Mas tive que vivê-los tentando, com Elza [Freire, esposa de Paulo Freire], não permitir que a saudade do Brasil me paralisasse. A saudade que eu tinha era uma saudade mansa, bem comportada, direita, que me empurrava para o futuro, não me amarrava ao passado. Em alguns dos meus encontros com vários amigos no exílio, muitos dos quais sofriam profundamente a falta do Brasil —não digo que sofriam mais do que eu; sofriam de forma diferente— vi que eles eram sofridos por essa falta. E por causa disso idealizavam. Viam aberturas quando não havia nenhum sintoma disso. E, às vezes, eu sentia pena porque tinha de funcionar como uma espécie de desmancha-prazeres, chamando-os para o realismo.

Mesmo assim, sem querer criar na minha cabeça uma realidade que satisfizesse o meu sonho, eu estava como que à espera da emoção da volta. Só que guardava isso com muito cuidado, até com carinho, e talvez até egoisticamente eu não mostrava. E isso funcionava como uma defesa do sofrimento. Em certo sentido havia uma espécie de preparação da volta. De modo que quando nessa nossa re-conversa você perguntou da emoção ao descer, e até antes, ao sobrevoar o Brasil, num certo sentido estava sendo preparada essa emoção. E era até necessário que estivesse.

Senão teu coração explodia?
Ah, explodia. E veja: por falta de tero no Rio viemos direto para São Paulo. Chegamos uma hora e meia antes da hora marcada. Quando sobrevoávamos Campinas, eu me preocupei em observar os meus filhos que olhavam misteriosamente aquele mundo lá embaixo.

Mundo um tanto desconhecido pra eles que saíram daquilo com 5 e 8 anos, não?
Exato, exato. Tu te lembras deles pequeninhos, não? Aí descemos em Viracopos. Sentimos o cheiro do chão, que é uma das coisas mais formidáveis.

Cheiro bom da terra da gente. Cheiro de pele de gente da gente.
É, isso é uma maravilha! Quando saímos da faixa interna do aeroporto então, as emoções se multiplicaram, porque aí eu via caras. Revia caras cuja impressão eu tinha deixado aqui 15 anos atrás. Eram emoções distintas encontrar diferentes gerações no aeroporto. A minha geração, a de Fernando Henrique [Cardoso]. A de Francisco Weffert [cientista político da USP], Almino Afonso. Encontrei gente jovem que trabalhou comigo em São Paulo e até que trabalhou também no Nordeste. E encontrei também o que costumo chamar de a "geração dos sobrinhos brasileiros", jovens hoje que tinham 5, 6 anos quando eu saí do Brasil. E que me abraçavam dizendo: "Viva! Paulo chegaste". Daí pra cá não parou mais, as emoções se multiplicam. É o telefone que toca (o telefone não parou mais de tocar todo o tempo) e que me chama de diferentes pedaços do Brasil me trazendo uma voz de conforto, e também com muito otimismo, pra dar um pulinho em Porto Alegre, em Salvador, em Brasília. E seria pra mim uma alegria enorme rever estas cidades. Mas não dá nessa primeira visita que é curta, um mês somente. E a nossa geografia sentimental do país inteiro.

E os teus filhos vendo esse entrar e sair de gente, identificando você com esse alvoroço brasileiro, esse querer saber tudo. Como é?
Bom, como é que os meninos reagem né? (os 'meninos' tem 20 e 23 anos), Ainda ontem o mais moço me dizia: "Realmente, o Brasil tem o que ver comigo e eu tenho o que ver com o Brasil". Não sei se essas expressões ainda se diz.

Claro! Tá tudo aí, todo mundo usa.
Ontem à noite, por exemplo, um dos momentos dessa alegria foi ver e ouvir a [Maria] Bethânia. Na sua parte escrita eu quero até agradecer por que, quando ela soube que estávamos no teatro, mandou que a gente entrasse para falar com ela, menina!

Isso não é uma coisa muito brasileira?
Muito, muito. Isso é o Brasil. Não sou crítico de coisa nenhuma, sou é brasileiro, e acho extraordinário ver como a Bethânia propõe ao público um poema ao lado de uma música que necessariamente não foi ela quem fez. Também no jeito do seu corpo, como algo a ser lido por nós, e não apenas ouvido, e com uma graça, um respeito por si própria! Achei fantástica essa unidade e essa expressividade comunicante da Bethânia. Foi uma noite de imensa emoção. E eu tinha visto Bethânia uma vez só, na TV alemã.

Virgem Maria!
Virgem Maria mesmo. Eu tinha ido dar um seminário na universidade alemã e estava comendo uma feijoada em casa de um professor que tinha morado no Brasil.

Feijoada alemã com gosto de quê?
De feijoada mesmo, pode acreditar. Perfeita! E por coincidência estavam mostrando uma parte de um show da Bethânia. Ontem eu a vi!

De pertinho, até podendo tocar nela?
De pertinho, e até a abracei e agradeci. Fiquei triste porque pedi um autógrafo na capa de um disco dela que eu havia comprado, mas a danada da minha caneta suíça falhou.

Até caneta suíça falha!
A capa do disco é muito lisa também. E quando sai, chovia demais. A chuva caiu em cima do que ela conseguiu escrever e borrou tudo. Borrou a comunicação de Bethânia. Isto fez parte do meu reencontro com o Brasil. Não vou esquecer nunca. Porque, veja: tu que começaste a conversar comigo antes de 1964 e com quem agora reato a conversa que parou... É como se eu tivesse te dito: "Olha, Ione, espera aí um momentinho que eu já chego". Custou, mas cheguei. Tu que me conheces de muito tempo, tu sabes que, sobretudo, eu sou um cara que vive, que existe. Essa é a minha pretensão: amar a existência.

O gosto pela vida que não há nada, tempo ou ninguém que tire, é o mesmo?
O gosto pela vida... que não há nada, nada, que tire. Isso mesmo. A vida é uma pedrinha no chão. A vida é uma noite de lua, que a gente não tem na Europa. Existe, mas a gente não vê.

Gozado. Fisicamente, Paulo Freire mudou um bocado. Mas não te vejo com pressa, afobado, angustiado ou tímido, apesar destes 15 anos e do porquê deles. Não há em você nenhum sintoma de exilado. Está até mais calmo e sereno do que antes. Não se queixou ou lamentou. Que é que é isso?
É verdade... Bem, evidentemente que a minha imaginação sempre passeou pelas bandas de cá. A minha e a de Elza. Às vezes eu tento sondar a memória dos filhos que saíram pequenos. Quase nada acontece. Vamos ver aqui, agora. Imagine que um deles recorda o domingo em que eu ia com eles numa ponte grande, no centro do Recife [Ponte Duarte Coelho]. Ele diz: "Eu olhava assim, lá embaixo, e você dizia 'meu filho, como é o nome deste rio?". Aí ele mesmo parou, pensou, pensou e lembrou: "Capibaribe!".

Eles me pediram que ao voltar agora ao Recife gostariam de sair comigo sozinhos. E só vou ter oito dias lá. Mas vou fazer tudo isso. Sair de manhã, ver o quintal da casa onde eu nasci, tomar caldo de cana no mesmo lugar onde eu tomava com eles. Nunca esquecemos disso.

Minha amiga, passamos 15 anos exilados, mas comendo comida brasileira. Elza que gosta de cozinhar —é uma artista!— nos primeiros dias quando chegávamos a um lugar, ela fazia uma pesquisa em torno do que existia para que tivéssemos algo parecido conosco. Nos Estados Unidos comíamos carne de charque, feijão preto, batata doce, cozido, macacheira. Lá tem o que a gente quiser. Em Toronto, no Canadá, a mesma coisa. Em Genebra tem menos, mas encontramos o mínimo fundamental. Na África, nem se fala. Mantivemos este tempo todo uma relação muito íntima com a nossa cultura. E gosto de comida é cultural, sem ofender o gosto dos outros, mas satisfazendo o nosso.

Não teve nadinha nesses anos que você não encontrou por lá?
Pitangada! Estou ansioso por uma. Já recebi muitos telefones dos amigos do Recife me prometendo. Vou ter várias pitangadas! Eu escrevia falando nisso, acreditas? Lembro de uma carta para um amigo do Recife em que eu dizia: "Se você um dia sair de casa de tarde, no tempo do verão, céu azul, ventinho ensinado varrendo a rua da Aurora... se você sair pra passear numa tarde como essa, fixe o momento em que dobra a esquina. E fixe o momento de uma surpresa que tenha ao dobrar a esquina. Nunca mais esqueça. Trate com cuidado esse momento, porque pode ser que um dia você se exile também. Se você numa manhã de sol vai numa praia como Rio Doce, Tambaú, na Paraíba, queime direitinho o seu corpo. Molhe o seu corpo nas águas mornas do Atlântico e guarde a saúde desta quentura. Se você tem uma pitangueira em casa, cuide das pitangas. Se você tem uma goiabeira...". A carta era toda assim, de chamamento à atenção para as coisas que deviam ser bem cuidadas.

E às vezes passa-se tão distraído, tão desatento por elas por que estão sempre tão à mão!
Tão à mão... que nem se sabe o valor que isto terá depois! Aparentemente, esses momentos eram de nostalgia, mas eram saudade doce e amiga.

Impressionante este teu jeito de manter as coisas perto. Em nenhum momento você me perguntou "e o fulano? E a ponte da Imperatriz não desabou na última enchente lá no Recife? Ainda tem goiaba nessa época?". Parece que nada se desprendeu de você.
Nadinha. Você observou muito bem. Estas coisas que eu vivi com tal intensidade... Nada alvoroçado, profundamente, carinhosamente... que eu as assumi e fui assumido por elas. Daí a paz com que eu desci do avião. Te confesso que eu me perguntava: "Paulo, o que há contigo? Por que tanta paz?". Era a paz de quem voltava em paz. Eu nunca dei as costas ao meu país, mas também nunca me senti torturado por estar longe dele. Me senti capaz de integrar-me com outras culturas.

Não foi também por causa do tipo de trabalho, dos contatos humanos, que você se manteve em paz, mesmo longe?
Claro. Eu fui exilado confrontando certos riscos, mas de uma forma conscientemente crítica. E o que é importante: tendo sempre o Brasil como uma preocupação. Além disso, havia o apoio crítico-afetivo de Elza, de uma importância extraordinária na minha vida íntima, inteira. Mas sobretudo nesses 15 anos.

A grande companheira! Sempre prestando atenção nela e em você.
Sempre. Tomava conta da nossa saudade, de dar certas cordas à saudade.

Sem esticar demais.
Perfeito. Eu não quero dizer que fui um exilado perfeito. Isto não existe. Mas ninguém faz o que fiz sozinho. Foi tudo um conjunto, com as pessoas de fora e de dentro de casa. Com todas as dificuldades que uma situação de exílio pode propor, se não tivéssemos o cuidado de cuidar da estrutura da casa, do lar, da relação com os filhos, talvez hoje a minha volta fosse um tanto arrebentada. Temos as marcas dos 15 anos. Elza mais gorda, mas muito mais moça do que eu. Eu com pouco cabelo, e branco, o que me leva na Europa a usar chapéu para defender a careca... A barba que vem ficando rapidamente branca, e que comecei a usar há 10 anos nos Estados Unidos para me defender do frio de Cambridge, que é terrível... Mas, voltamos inteiros.

Já te contaram que a volta de você não tem causado nenhum tumulto? Que não existe especulação ou enquadramento para o que vocês vão fazer, onde e como fazer?
Olha, há uma coisa que eu quero sublinhar. É a maneira como a imprensa desde que cheguei, até em entrevistas por telefone, tem se comportado comigo de forma muito madura, profissional, compreensiva, respeitosa. Isto não significa que todos os jornalistas com quem conversei concordem comigo. O que saliento é a seriedade com que me tratam, recebem, veiculam. Isto me agrada muito.

Como você avalia esse comportamento?
Eu não avaliaria em função de mim mesmo. Esse comportamento deve ser geral. Deve ser um momento de desenvolvimento dos que fazer a imprensa em função do momento histórico brasileiro. Há uma espécie de camaradagem, sabe? Não digo que vá se eterno. Mas foi uma forma de demonstração de carinho que nos deixa muito contentes.

Acho que deve ter algo muito claro quando a imprensa vem conversar com você. Pelo que me consta, as perguntas são muito diretas, não há nenhum jogo duplo pra te pegar. Pelo que li, ninguém tem perguntou, por exemplo, em qual PTB você poderia se alinhar, ou se mais importante é a frente de oposição do MDB. Por quê?
Engraçado. Todos eles perceberam que não precisam preocupar-se porque falo franco e aberto. Teve dias que fui entrevistado das 10h da manhã às 7h da noite. E aqui o clima, o tempo todo, foi de cordial e franca abertura, de amizade, nenhuma cobrança. Acho fantástica esta compreensão.

Sei que você não é chegado a melancolia. E acredito que na Europa você integrou novos amigos, novas emoções, e que devem ser muitas. Laços bons que empurram para frente. E me pergunto, te perguntando: se eu tivesse passado tanto tempo fora, voltando ao Brasil e indo por último ao Recife... o coração ia balançar demais. Aí fico vendo aquela casa do Jardim Triunfo (onde você morava), principalmente à noite, depois do jantar, você sentado na cabeceira, Elza ao seu lado esquerdo, os meninos pequenos, e nós, gente mais jovem, num clima tão bom de igualdade, de solidariedade, conversando com Paulo...
Tempo bom e rico.

E íamos conversar e trabalhar sobre uma pesquisa importante chamada "Universo Vocabular".
Exato, exato!

Paulo, eu queria tanto que você contasse alguma coisa daquelas noites do Jardim Triunfo quando descobrimos a importância da palavra "tijolo".
Sim, eu tenho uma notícia pra te dar. Aquelas conversas que nós tínhamos se deram no mesmo momento em que eu me estendi com a Universidade do Recife até o Rio Grande do Norte para a célebre experiência de Angicos [cidade do RN onde se deu a experiência piloto de alfabetização pelo método Paulo Freire, dentro das 72h estimadas neste método]. Mas ontem —tu não imaginas a emoção!— eu recebi um telefonema de Natal de um dos jovens que foram educadores em Angicos. E ele me disse que está cheio de documentos, de investigações posteriores provando que não houve regressão.

homem negro segura um bebê em seu colo e está em pé diante de uma lousa, na qual as sílabas da palavras 'tijolo' estão escritas separadamente
Aluno soletra a palavra tijolo, em Sobradinho (DF), no Instituto Paulo Freire - Instituto Paulo Freire

Maravilha! Provando então que o método naquela época já estava certo e o que foi aprendido está lá, intacto?
Intacto. Inteirinho! E progrediu, avançou. E me disse que ele está pensando em publicar um trabalho com testemunho de uma experiência, sem nenhuma pretensão de estar fazendo nada extraordinário, mas de um momento da educação popular no Brasil.

Mas é um testemunho extraordinário que não se pode perder.
Pois é. E que tem um sentido do próprio tempo. Mas, não era possível parar nos meus últimos anos de exílio. Então, eu tive outras tantas Iones para conversar, outros tantos Marcos, Carlos, Pedros e Antonios. Às vezes falando outras línguas, nessa minha peregrinação, nessa minha andarilhagem. No terceiro capítulo da "Pedagogia do Oprimido" eu relato como o método avança além do tema gerador. Isto vem se desenvolvendo muito em outras investigações fora da América Latina.

Me conte desses avanços. Porque pra mim ainda está muito gravado na aplicação do método de alfabetização o momento em que mostrávamos, através de desenhos, que o homem ao transformar a natureza —construindo a casa, o poço, os tijolos —faz cultura. A relação ser humano-mundo, né? E eu lembro das nossas caras de espanto quando ouvíamos o ainda analfabeto dizer: "Quer dizer que quando eu faço tijolo, eu faço cultura?" ['Tijolo' foi o tema gerador do método de alfabetização no NE). Então descobriram que apesar de toda a crueza da social em que viviam não eram "coisas", sombras que sobreviviam como podiam. Faziam parte da sociedade de todos os homens. Lembras?
Esta experiência se repetiu, eu a vivi lá fora, exatamente. Há uma afirmação que eu lembro bem, entre milhares, de um velho camponês chileno. Numa noite, a uns 60 km de Santiago, eu assistia a um debate. Lá eu não fazia o debate, meu "castanhês" não me permitia, isso era feito por um nacional. Num certo momento exatamente na discussão do problema da cultura, da relação ser humano-mundo, de repente o camponês olha assim com energia, mas sobretudo com paz, e diz:

"Agora eu sei que sou um homem com cultura."

E eu perguntei: por quê? Ele me olhou e disse:

"Ora! (como quem dissesse: isto é pergunta que se faça?). Porque trabalho e, trabalhando, transformo o mundo."

Eu fiquei tão comovido como estou te vendo agora. Outro camponês, discutindo esse mesmo problema, disse:

"Agora eu descubro que não há mundo sem o homem. E não há o homem sem o mundo."

E o educador disse: "Muito bem. Agora vamos admitir que no momento atual, morressem todos os homens e todas as mulheres, mas ficasse a Cordilheira dos Andes, todos os animais, as árvores. Seria mundo isso?"

E o velho camponês, possivelmente numa posição que chamaríamos agora, academicamente, de subtjetivista/objetivista, respondeu:

"Não."

E o educador: "Por quê?". E ele:

"Porque não haveria quem dissesse: isto é o mundo."

Coisas maravilhosas! Agora, Ione, eu tenho uma observação pra te fazer e não sei se tu concordas. Retomando as nossas conversas do Jardim Triunfo, a minha observação é a seguinte: quando nós, você bem menina, eu moço mas já homem feito (comecei as minhas pesquisas lá pelos 20 anos), quando costumávamos conversar, trabalhar, fazermos perguntas uns aos outros... Eu hoje estou convencido, Ione, de que naqueles momentos em que a gente se espantava em Recife, Angicos, São Paulo, onde quer que estivéssemos, não importa, mas quando a gente se espantava a ouvir informações como a de uma mulher, em Recife, ao dizer: "Eu quero aprender a ler e escrever pra deixar de ser sombra dos outros", tu te lembras?

Lembro muito bem.
Estou convencido de que o nosso espanto diante disto tinha uma origem de classe. No fundo, era um espanto de elitistas que não queria ser —e inclusive proclamavam que não eram —mas nosso espanto revelava que ainda éramos elitistas.

Isto é absolutamente verdadeiro. O espanto era o desconhecimento completo do nosso povo. Não sabíamos quanta sabedoria havia nele.
Exato.

O que faltava era uma chance, um instrumento que organizasse, sistematizasse o conhecimento.
Claro! E era como se disséssemos: "Quem pode expressar uma compreensão dessas?". Só esperávamos isto de nós mesmo. É a ideologia do conhecimento verbalista que temos. Ai daqueles, entre nós, que não foram capazes de superar este espanto! Porque só os que superaram isto na prática, pensando a sua prática e que foram vivendo a conversão ao povão, descobrindo, então que é o fato do trabalho dele mesmo, é a dureza da sua experiência que o faz saber isto tudo. E não é privilégio nosso.
O que temos que fazer é apenas, em colaboração com o povo, sistematizar ou proporcionar meios de sistematizar, um conhecimento que sempre esteve lá. Foi preciso viver isso tudo pra perceber essas coisas. Afinal de contas nossa formação era esta.

Certo. E mais: essa coisa do espanto era natural, então, e até necessária, pois sem ela continuaríamos universitários, apenas. Na verdade, transmitimos tanto, mas aprendemos muito mais.
Nos seminários de formação de educadores, eu chamava muito a atenção para esta convivência com o povo, lembras? Para esta compreensão da realidade. E havia também uma coisa boa que era nos sentirmos muito bem, felizes. Pra mim era como se estivessem comprovando uma coisa, que era o método, da qual eu ainda não estava muito convencido. Hoje eu te confesso: não me espanto mais. Me espanto quando se dá o contrário. É quando em Círculos de Cultura [trabalho conjunto da alfabetização], na África, por exemplo, eu não ouço frases como as que comentamos. A análise crítica, por parte do povo, não me espanta, de jeito nenhum.

Paulo, sei que o método avançou, adaptou-se a cada realidade cultural onde foi aplicado. Na aplicação há alguma semelhança com a experiência brasileira?
Mudou muito. Quando discuto o nosso comportamento na Guiné, eu digo que as experiências não se transplantam, elas se recriam, reinventam-se. O que tenho tentado fazer no mundo —enquanto um andarilho da obviedade, que é isso que eu sou —é demonstrar que nós temos que recriar. O caso do Chile, por exemplo, te respondendo diretamente, foi muito interessante. Os chilenos se recusavam a apresentar as fichas do mundo da cultura antes da alfabetização. Claro que estas fichas tinham codificações chilenas, feitas por um extraordinário pintor jovem. Se ele ia fazer codificações para uma zona rural, ele passava oito dias antes pela zona com um pincel e um cavalete, pintando, fixando a região e os traços fisionômicos do povo, fazendo pesquisas.

Algo muito mais rico e real do que as nossas fichas que eram simplesmente desenhadas, hein?
Muito mais, muito. O trabalho dele era uma coisa tão perfeita que no meio do debate o camponês olhando a ficha dizia: "Esse cara aí é a cara do compadre João". Porque o tal rapaz pintava os traços característicos daquela região. Pois bem, os chilenos se recusavam a discutir a questão da cultura em si, como uma introdução à alfabetização. Exigiam entrar imediatamente na alfabetização. Os educadores chilenos tiveram que dar um salto, me reinventaram. Enquanto aqui nós levávamos de três a quatro dias na discussão do conceito de cultura, ou as relações entre seres humanos-mundo, a prática transformadora do mundo pelo trabalho humanos (que era a introdução ao método de alfabetização), no Chile tudo isto era discutido na própria decodificação da palavra geradora, entendes? Pois é o que é mais correto. Por isso mesmo, nas experiências africanas nós já sugerimos entrar direto na palavra geradora. Nós estamos voltando também de uma viagem aos Estados Unidos. Passamos um mês na Universidade de Michigan, onde tive seminário de verão. No último dia do seminário um jovem me perguntou: "Se estou interessado em repetir aqui no meu país, na minha cidade, algo do que tu fizeste, o que devo fazer?". E imediatamente respondi: reinventar-me. Fora disso não dá. Em fevereiro estive em Nova Delhi, na Índia, durante dez dias. Num primeiro seminário eu trabalhei com gente que tinha lido tudo que escrevi (lá meus livros e trabalhos estão publicados em inglês e em hindi, a língua nacional) como aplicado tudo na prática, no trabalho rural.

O seminário, então, era pra discutir contigo o resultado da prática?
Exatamente. Mas não ao nível da alfabetização, aí é que está! Mas o que chamaríamos aqui de pós-alfabetização: ao nível de uma formação geral, de educação política, por exemplo. Foi fantástico!

Imagino você vendo um Paulo Freire indiano.
Paulo Freire indiano! Se o Paulo Freire brasileiro tem algo de corretor, ao lado de erros e deficiências, o indiano também estava correto —só que indiano. Era dialogar comigo mesmo numa outra perspectiva. Então, este seminário não foi nada livresco, não foi uma discussão conceitual dentro dos livros. Esta experiência eu também tive na Europa. Recentemente, publicou-se na Alemanha um livro grandão: "Aprendendo com Paulo Freire". Conversei quatro horas com os autores. É um relatório bem alemão, com uma profundidade teórica imensa em que estes autores me reinventaram, recriaram. O que não dá certo é fazer transplante puro. Não se pode fazer isto nem aqui, no mesmo país, nem no mesmo estado. Em Pernambuco, por exemplo, há diferenças entre a zona do agreste, o centro urbano, a zona da mata.

Bom, recriado e recriando, você trabalhou o tempo todo só com educação?
Ah, isso é uma característica minha e do meu exílio até hoje, e que me confere um certo ar de privilégio. Enquanto muitos exilados que conheci e de quem me fiz amigo tiveram que reciclar-se, buscar uma nova profissão, refazer-se do ponto de vista profissional, eu cheguei num dia, e no outro comecei a trabalhar no mesmo lugar. Contando os dez dias que passei muito mal, em La Paz, por causa da altitude, e depois, mais ou menos um mês, à espera de um documento boliviano pra sair do país e entrar no Chile, eu trabalhei todo o tempo desses 15 anos. Foi bom porque eu saía de uma prisão no Recife. E por mais que não tivesse fazendo coisa nenhuma na prisão, uma prisão não é lugar para se repousar. Por isso, não tenho nem do que reclamar. Trabalhei sempre como educador, no concreto. Foram 15 anos de reflexão, estudo, de crítica, de curiosidade, que jamais desapareceram, jamais. É preciso que eu esteja muito cansado, exausto, para não estar esperto para algo. Isso tornou-se em mim a prática de pensar a prática. Esses anos me ensinaram uma enormidade.

Você não tem secura de, voltando pro Brasil, reinvestir aqui toda esta experiência?
Ah, sim. Por outro lado, eu vou levar um tempo porque sei que estou num contexto brasileiro —que é meu e para o qual volto felicíssimo —buscando ver onde, neste contexto, eu posso ser útil. Na atividade docente, investigadora, que é o que estou discutindo nesta passagem.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.

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