Descrição de chapéu Entrevistas históricas

'Não existe perigo maior que a idolatria da segurança nacional', disse dom Hélder à Folha em 1978

Lembrado pelo Papa Francisco em mensagem de Natal, bispo cearense perseguido pela ditadura falou ao jornal pouco antes da Lei da Anistia

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São Paulo

Um dos mais importantes líderes da história da Igreja Católica no Brasil, dom Hélder Câmara (1909-1999) foi lembrado pelo Papa Francisco na mais recente mensagem de Natal do pontífice.

Uma frase célebre do religioso cearense foi citada pelo papa: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.

Dom Hélder Câmara, que morreu em Recife no dia 27 de agosto de 1999, aos 90 anos - Folhapress

Dom Hélder foi arcebispo de Recife e Olinda de 1964 a 1985, um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, e voz aguerrida em favor dos direitos humanos, da população marginalizada e pela democracia durante a ditadura militar. O processo para canonização do líder religioso está aberto oficialmente desde 2015, mas não foi concluído.

A teimosia lhe rendeu o apelido de “bispo vermelho” nos quartéis, embora fosse crítico dos regimes socialistas, como fica evidente em entrevista à Folha publicada em junho de 1978 no Folhetim, extinto caderno dominical de cultura.

O religioso era um homem “muito pequeno, mirradinho”, que falava como quem discursa, empolgado e com os braços erguidos, segundo o jornalista Sérgio Pinto de Almeida, que o entrevistou.

Em quatro páginas do jornal, dom Hélder comentou a situação política dos trabalhadores no país, a perspectiva de uma Lei da Anistia (que viria a ser promulgada pouco mais de um ano depois) e questões internacionais.

Também ponderou se Marx chamaria a religião de ópio do povo naquele tempo, criticou os efeitos da Guerra Fria em países africanos, que haviam passado por processos recentes de independência política, e falou sobre democracia dentro da CNBB.

A gama de assuntos abordados e os três títulos honoris causa pelas universidades de Harvard, Notre Dame (ambas nos EUA) e Sorbonne (França) na parede de sua casa contrastavam com o homem pequeno e curvado, em trajes religiosos e casa humilde, segundo Almeida.

“A casa era muito frugal, de uma simplicidade quase monástica. Além das três láureas, as paredes tinham só um crucifixo e poucas imagens santas. Na mesa, um pequeno vaso com um pé de feijão”, conta.

“Também me impressionou muito que cheguei lá e ele me recebeu sozinho, sem companhia ou seguranças”, lembra o jornalista.

A preocupação não era em vão: no muro atrás de sua casa, que ficava nos fundos da Igreja das Fronteiras, no bairro de Boa Vista, em Recife, ainda estava aparente uma antiga pichação que dizia “morte ao bispo vermelho”, ameaça que não parecia incomodar o religioso.

“Um assessor de dom Hélder, um padre bem mais jovem foi morto pela repressão. Foi um caso muito traumático, era uma pessoa próxima dele. A partir daí o controle sobre dom Hélder aumentou muito”, lembra Almeida. Ele se refere ao assassinato de Antônio Henrique Pereira Neto em 1969.

O corpo diplomático brasileiro, durante a ditadura militar, também agiu para sabotar as indicações de dom Hélder ao Nobel da Paz, na década de 1970. Um dossiê da Comissão da Memória e Verdade de Pernambuco reuniu depoimentos e outros documentos para provar a atuação do governo brasileiro.

A entrevista é republicada agora na série Entrevistas Históricas, que recupera conversas e personagens marcantes que passaram pela Folha, em comemoração ao centenário do jornal.

Após a introdução original de Almeida, estão os trechos principais da entrevista. A versão na íntegra pode ser lida no acervo digital da Folha.

*

Conversar com dom Helder Câmara é muito fácil: basta perguntar a qualquer pessoa no Recife onde ele mora.

Até seus vizinhos informam se ele está ou não em casa. “Pode bater forte que ele tá lá dentro estudando.” Depois de alguns instantes, o portão é aberto e, com o semblante muito tranquilo, surge o tão condenado arcebispo de Olinda e Recife.

Sem guarda de segurança, má vontade ou exigências, convida para entrar e se dispõe a conversar. Fala muito fácil, consciente do significado político e social de suas palavras.

Nas paredes da sala, algumas imagens religiosas e os prêmios doutor honoris causa que recebeu das universidades de Sorbonne, Harvard e Notre Dame. No centro da mesa, um pequeno vaso com brotos de feijão.

Aos 69 anos, ele continua com a mesma disposição que sempre mostrou, trabalhando muito até tarde da noite.

-- O senhor deve estar cansado…
-- Meu filho, não é hora de descansar, diz. Temos muito o que fazer…

Na despedida, lembra que sua porta estará sempre aberta. Não pergunta quem é ou o que deseja. Abre o portão e convida para entrar.

Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, durante a 7ª Assembléia Geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em Aparecida (SP) - Gil Passarelli - 9.mai.1967/Folhapress

Organização dos trabalhadores

Creio que nós devemos incentivar, através da pastoral, sindicatos autênticos, mas não daquela linha dos sindicatos americanos que acabam participando do sistema. E incentivar também a presença dos trabalhadores em partidos políticos, que eles escolham.

A nós não cabe estar fundando partidos, mas que os trabalhadores não se ausentem da vida política porque, afinal de contas, a expressão última de seus desejos se decide, em grande parte, nos seus sindicatos e nos partidos políticos.

Estudantes na política

Seria uma lástima se num país jovem como o Brasil, e as estatísticas mostram que existe uma massa enorme de brasileiros com menos de 25 anos, os estudantes daqui não tivessem seu lugar reconhecido, a sua atuação respeitada.

Ela só não é respeitada nos momentos de exceção, mas agora o país inteiro diz que é mais do que hora de que a exceção não vire regra. Basta, basta de exceções!

Mas o que foi admirável é que, apesar de armas tremendas, com as que foram mobilizadas contra a juventude, e particularmente a juventude estudantil, essa juventude manteve fibra.

São Paulo, Brasília, Rio, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Porto Alegre, o Brasil inteiro respondeu… É preciso também estar alerta porque o que se verifica é que através de regulamentações hábeis, o 477 [decreto-lei de 1969, baseado no AI-5, que proibiu manifestações políticas em escolas e universidades] pode desaparecer e o perigo ficar.

É preciso então estar alerta e enterrar o 477 com todas as honras que ele merece… E ficar alerta para que nenhuma nova regulamentação venha substituí-lo. Eu tive a oportunidade de dizer que se Hitler tivesse imaginado o 477, ele teria dançado de feliz como no dia da queda de Paris!

Anistia parcial

Veio de São Paulo, através de Dalmo Dallari [jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP], esta revelação dos 10 mil brasileiros direta ou indiretamente marcados por este problema terrível. [Ao voltar da Europa, Dallari afirmara que cerca de 10 mil brasileiros estavam exilados; em nota após a denúncia, o governo militar confirmara apenas 126 nomes.]

Anistia, por definição, é total, é absoluta. Isso de anistia parcial, de revisão de processos, tudo isto é não entender o que seja anistia.

Mas eles dizem que é perigoso… Ora, ora, perigo… Existe perigo maior do que a idolatria da segurança nacional? Colocar a segurança nacional como valor supremo? Há anos que nós vivemos debaixo desse fantasma da segurança nacional transformado em ídolo. E isto cobre a América Latina inteira.

EUA e as ditaduras latinoamericanas

Na hora em que os Estados Unidos sonharam com a liderança mundial na luta pacífica pelos direitos humanos, deveriam se lembrar de examinar onde foi que a América Latina aprendeu os mais sofisticados métodos de tortura.

Em que escolas eles foram aprender? Com quem? Quem foram os mestres da tortura? Pois eles aprenderam esses métodos de tortura ou na América do Norte ou no Panamá, mas o Panamá aí servindo apenas de anfitrião, era apenas cobertura.

Marx, socialismo e religião

É verdade que continua de pé o alerta que eu dava aos meus amigos marxistas, a jovens marxistas do mundo inteiro, alguns mais marxistas do que o Marx, a meu ver sem entender tudo que há de dialético em Marx. Ele estava aberto à realidade, era humilde diante da realidade.

Então, porque a religião parecia uma força alienada e alienante, isto não significa que está selado que a religião é mesmo o ópio do povo. Dentro de todas as grandes religiões, há hoje movimentos bastantes expressivos que não aceitam a religião como força alienada e alienante. Ao contrário, procuram viver e fazer viver a religião como uma força de esperança e de libertação.

Outro capítulo em que o espírito dialético de Marx já o teria conduzido a rever a realidade é a questão da ligação entre socialismo e materialismo.

Parecia, à primeira vista, que para chegar a um socialismo autêntico era necessário que houvesse o materialismo. Mas a experiência está aí, mostrando que há socialismos que não aceitam, que não querem ser materialistas.

Agora, o que eu não esqueço é que, infelizmente, os maiores adversários de uma solução socialista para o mundo são as experiências socialistas, sobretudo na Rússia, já agora também na China.

Guerra Fria na África

Quando a gente olha para o que se passa na África, que num certo momento teve esperanças bastante concretas de conseguir afinal a sua libertação… Cada vez que chegava um jovem embaixador de uma jovem república africana, a gente respirava fundo, parecia que era uma nova África que surgia.

Mas o que é terrível é que os países da África enfrentam essa experiência que a América Latina já conhece há mais de século e meio, de ter só independência política sem ter independência econômica, sem independência cultural. E então os países africanos correm em busca de quem os ajude.

E ao lado do império americano, sem dúvida nenhuma, como verdadeiros impérios, surgem a Rússia e a China. É uma tristeza, uma tristeza… Porque hoje, quando se olha o mapa da África, a impressão que a gente tem é que há um neocolonialismo. Há países que estão amarrados sob a influência norte-americana como há países que estão marcadamente sob influência russa ou chinesa…

Igreja e política

Um dos meus grandes amigos é Roger Garaudy [filósofo francês e ex-deputado pelo Partido Comunista Francês, do qual foi expulso na década de 1970], eu o estimo como um querido irmão. Ele está entrando no cinema adentro. Acredita na força do cinema e está fazendo. Há pouco tempo eu o encontrei e ele estava com um filme sobre um profeta fabuloso, extraordinário. Mas quando o profeta está no auge do seu profetismo vem-lhe a tentação de tornar-se rei. Aí é uma derrocada tremenda. Ele queria aludir ao socialismo, que quando chega ao poder tem sido um desastre.

Quer dizer, eu repito que, a meu ver, os maiores adversários de uma experiência, de um socialismo verdadeiramente humano são as superpotências comunistas.

Quanto à Igreja o que eu posso dizer é que, felizmente, Deus não exige de nós êxito, vitória. Exige trabalho. E nem temos que estar preocupados em que a Igreja dite a solução, encontre a solução. Não, isto tudo pode ser uma perigosa vaidade. A Igreja deve ser a presença viva de Cristo, servir e não ser servida.

E que contribuição ela está procurando levar neste momento? Nos países subdesenvolvidos produtores de matérias-primas, países pobres, a grande experiência nova é a que nós chamamos de comunidades de base.

Mobilização não-violenta

Nós procuramos dizer que “você tem cabeça é pra pensar, você tem boca é pra falar''. Naturalmente, eles [os pobres] respondem: “É, mas se eu falar, eu vou ser esmagado”.

Só se falar sozinho: se falar com os vizinhos, com a comunidade, para defender os direitos que homem nenhum lhe deu, que governo nenhum lhe deu, que foi o próprio Deus… Os direitos humanos são criação de Deus! Não é favor de governo nenhum, nem de rico nenhum. Foi Deus quem nos deu os direitos humanos.

Então, se vocês se unirem com seus vizinhos, não é para fazer nenhuma revolução, nem golpe armado, nem complô não. É para defender os direitos. Porque a grande força é a força que usa armas que os opressores não podem usar. Se quiser se meter a comprar metralhadora, comprar bomba, estamos liquidados.

Nós temos que usar a verdade, temos que usar a justiça, o amor. São estas armas diferentes e armas invencíveis. Interessante como muita gente pensa que a não-violência é inútil, não leva a nada. Mas, que coisa curiosa como seus líderes são punidos. Não é por acaso que Gandhi foi morto. Não é por acaso que Martin Luther King foi morto.

Convites do bloco socialista

O convite para ir à Iugoslávia foi feito pelas universidades de Zagreb [cidade que é hoje parte da Croácia] e Liubliana [hoje na Eslovênia], e o curioso é que é dito no convite que ele tem um valor permanente e que eu serei livre inclusive para criticar o regime. Um belo convite.

Quando o embaixador da Iugoslávia me procurou, antes de ler o convite, eu disse: “Senhor embaixador, eu quero agradecer sua fineza, mas devo dizer que, embora ainda não conheça os termos em que o convite é vazado, só visito países em que posso falar aberta e rasgadamente. O único país do mundo onde eu admito viver sem liberdade é o Brasil. É o meu país. Mas fora daqui, não”.

Ele disse: “O senhor vai ter a surpresa de verificar que o convite lhe dá liberdade, inclusive, para criticar o nosso regime”. Eu comentei: “Bem, se eu não terei problemas com o seu governo, provavelmente eu terei com o meu porque se eu, visitando apenas países que são superpotências capitalistas, me chamam de comunista, agora imagine se eu for à Iugoslávia!”.

No ano passado, eu recebi um convite do patriarca de Moscou, para tomar parte no congresso que eles chamavam de Trabalhadores Religiosos para uma Paz Duradoura. Eu respondi imediatamente dizendo que agradecia muito o convite dele, mas que eu não aceitava porque não acreditava, infelizmente eu não acreditava, que houvesse condições para uma discussão realmente livre em Moscou.

Posições conflitantes dentro da Igreja brasileira

Na última assembleia dos bispos em Itaici [encontro anual da CNBB], nós éramos exatamente 244 bispos. Tínhamos um documento importante para examinar e, cada vez mais, a conferência dos bispos, ou dentro da conferência dos bispos, o pensamento não é vencer, mas convencer.

A nós o que interessa é rezar juntos, é estudar juntos, é debater, dialogar, ouvir. Nenhum de nós chega lá pretendendo levar a solução na algibeira.

Pois bem, depois de dez dias de orações, de estudos, de debates, depois de um documento que tínhamos em mãos ser examinado capítulo a capítulo, parágrafo a parágrafo, às vezes parávamos diante de uma palavra. Quando houve a votação, nós tivemos 240 apoiando o documento, e quatro discordando.

Agora, o bonito é que hoje qualquer irmão nosso do episcopado tem a confiança de dizer seu pensamento inteiro. Mesmo quando sabe que a grande maioria não está na mesma linha. Mas ele tem certeza que será respeitado.

Por exemplo, quando eu vejo qualquer pronunciamento de um bispo que não está de acordo com aquela maioria de bispos lá de Itaici, eu fico até feliz. É sinal de que, graças a Deus, ao menos dentro da conferência dos bispos, ao menos dentro da Igreja, não está havendo ditadura.

Este texto faz parte da série Entrevistas Históricas, que lembra conversas marcantes publicadas pela Folha.

Entrevistas Históricas

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