'Desinformação se combate com educação, informação e Polícia Federal', diz Felipe Neto

Youtuber foi alvo de campanha de difamação após criticar Bolsonaro e abraçou luta contra fake news nos ambientes digitais

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São Paulo

Processos judiciais contra assassinos de reputação nas redes sociais, educação midiática para que não se compartilhe notícias falsas e empoderamento da Polícia Federal para rastrear patrocinadores da máquina do ódio.

Esses são os caminhos para combater a avalanche de desinformação que ameaça a democracia brasileira, na opinião de Felipe Neto, um dos youtubers mais populares do Brasil, com 41 milhões de seguidores.

homem branco de cabelos pretos espetados
Imagem de entrevista concedida por Felipe Neto à Folha - Folhapress

Cada vez mais vocal politicamente, Felipe se transformou num evangelista dos perigos representados pelo mau uso das redes sociais e prega a responsabilização dos líderes de operações de desinformação.

“O que a gente precisa, obviamente, é de amparo da Polícia Federal, o que não vai acontecer enquanto Bolsonaro for presidente”, diz Felipe em entrevista que integra a série Fuga para a Frente, um dos projetos do centenário da Folha. Ele não poupa a mídia tradicional de críticas. “Se você restringe uma notícia fundamental atrás de um paywall, você está elitizando o acesso a boa informação, e isso é um problema muito grave”, avalia o youtuber, que diz ser preciso debater uma forma de ampliar o acesso das camadas mais baixas à informação de qualidade.

Apesar de declaradamente progressista, ele faz reparos à esquerda, que diz se comunicar mal, ser “prolixa” e não falar “de forma inteligente sobre ditaduras e regimes autoritários de esquerda”, casos do venezuelano Nicolás Maduro e do regime de Cuba.

Você tem atuado como evangelista sobre a ameaça da desinformação à democracia. O que funciona para combater fake news?
Um dos caminhos é educação digital. Temos uma população desinformada, que precisa dessa educação digital para não cair nas armadilhas criadas por quem orquestra a desinformação no Brasil. Existem maestros dessa desinformação criminosa.
O segundo caminho é o empoderamento da Polícia Federal para que seja efetiva contra líderes de quadrilhas da articulação do ódio. Não adianta punir quem compartilha ou quem acredita em fake news. Esses são vítimas que se tornam agentes da desinformação por falta de acesso à educação digital.
Você tem uma iniciativa de educação midiática?

A gente entregou na mão da população mundial a ferramenta mais poderosa da história da humanidade, a internet, e falou: usa aí. Sem manual, sem educar as pessoas sobre como não cair em armadilhas.

Eu criei o Instituto Vero com Nilce Moretto, Caio Machado e Estevão Slow. Nosso projeto inclui cursos, conteúdo digital e projetos de gamificação. O objetivo final é ensinar as crianças a utilizar melhor as plataformas digitais.

A educação midiática é importante, mas limitada. Há quem continue a acreditar em informações falsas mesmo depois de ser confrontado com aquelas verdadeiras. Como lidar com isso?

Esse é um problema sistêmico, que vai estar sempre presente. Mesmo com todas as soluções, ainda vai haver expoentes de negacionismo, insanidade coletiva, seitas. A gente tem que tentar diminuir isso ao máximo, usando boa informação.

O objetivo é fazer com que agentes da desinformação, do ódio e da violência voltem para o buraco de onde nunca deveriam ter saído e tenham vergonha de expor seus devaneios ou mau-caratismo.

Embora o problema seja sistêmico e de comunicação, ele é também de representação. Quem representa a sociedade acaba exercendo influência, e as pessoas que têm instintos racistas ou homofóbicos se sentem seguras pra se expor. A gente viu isso muito claramente tanto nos EUA sob [o ex-presidente Donald] Trump quanto no Brasil.

Nos EUA, discute-se quebra do monopólio de grandes plataformas e também a necessidade de mudar a regra que as exime de responsabilidade por conteúdo postado por terceiros. Qual é sua opinião sobre estes dois debates?

Esse é um dos assuntos mais complexos do momento. Hoje, o controle da comunicação global no ambiente digital está nas mãos de pouquíssimas pessoas. Isso é um problema. Mas existem bons argumentos que defendem a não responsabilização de plataformas sobre tudo o que é postado.

É um bom momento para o debate. Não é um bom momento para ter convicções plenas e irredutíveis. Há diferença entre plataformas. O Twitter ainda comete muitos erros, mas coloca marcações nos posts do Trump, lutando contra a desinformação [antes do republicano ser banido da rede social]. Já o Facebook nem marcação tem.

Acho que não dá pra mesma companhia controlar Facebook, WhatsApp e Instagram. É extremamente problemático. As eleições americanas de 2016 tiveram fortíssima influência do Facebook por meio da manipulação de algoritmos. Como a gente pode olhar para isso e dizer: “Deixa o mercado livre”? Não é bem assim, vamos dialogar.

Como isso se aplica ao Brasil?

O Brasil ainda está muito distante disso. O Brasil ainda está com a lei das fake news, tentando responsabilizar o tio do churrasco por ter compartilhado uma mensagem no WhatsApp.

Cenário brasileiro é deprimente em comparação ao nível de discussão nos EUA, na Alemanha, na Inglaterra.

Você é crítico ao PL das Fake News. Por quê?

O PL basicamente cria uma checagem do compartilhamento de mensagens para retroagir e encontrar a origem do primeiro compartilhamento. Só que essas mensagens, na maioria, são de uma pessoa que tira print de algo no Facebook e manda no grupo do WhatsApp. E aquilo viraliza.

Esse cara normalmente não tem instrução digital, acredita em tudo porque nem sabe a diferença entre um portal com inúmeros processos nas costas por difamação, injúria e todo tipo de crime, e uma Folha de S. Paulo. Ele não teve educação para diferenciar, então ele compartilha achando que é verdade. Esse cara é criminoso? Pelo amor de Deus, é óbvio que não é um criminoso.

O Brasil ainda está com a lei das fake news, tentando responsabilizar o tio do churrasco por ter compartilhado uma mensagem no WhatsApp

Felipe Neto

Youtuber

Quem é o criminoso? É o dono do site ou da página do Facebook que criou essa notícia com o intuito de fazer esse tio compartilhar ela no WhatsApp . O que o PL faz hoje é criminalizar o tio, enquanto o cara que produziu a notícia no Facebook está protegido no ambiente digital. Esse PL não vai pegar esse cara nunca. Só quem pode pegá-lo é a Polícia Federal.

É realista achar que, no governo atual, a Polícia Federal será empoderada para isso?

A gente não pode esperar nenhum investimento do governo federal nesse âmbito. Por isso é tão importante que, em 2022, o Brasil mude.

Só quem consegue pegar esses caras é a PF. A gente precisa empoderar a PF no próximo governo para que ela possa chegar a esses líderes da desinformação.

Agora, o meu chute é que, quando houver troca de governo, esses líderes vão desaparecer, vão se esconder, porque sabem a quantidade de crimes que cometeram. Tem o Oswaldo Eustáquio que está preso neste momento. Ele foi um dos grandes articuladores do ódio nesses últimos anos.

Como responsabilizar pessoas que lideraram uma campanha de difamação contra você depois que criticou Bolsonaro numa entrevista ao New York Times?

A gente fez uma investigação própria quando viralizou essa tentativa de envolver meu nome com pedofilia. Um rastreamento da origem de um dos vídeo, que era uma montagem horrível me associando com pedofilia.

Chegamos até um policial militar que trabalha no gabinete do Bruno Engler (PRTB), que foi candidato à prefeitura de Belo Horizonte. É um bolsonarista ferrenho, fanático. Então a gente entrou com um processo criminal contra o policial militar e contra o próprio Engler.

A terceira possibilidade de combate é justamente essa: a luta na esfera jurídica, com processos criminais. É um caminho mais demorado e mais caro, não é todo mundo que tem condição de fazer, mas acaba trazendo resultado. Quando você vê um [blogueiro] Allan dos Santos se mudando para os Estados Unidos, desesperado, porque sabe que está mapeado, ou o próprio [ex-ministro da Educação, Abraham] Weintraub fugindo do Brasil, com medo, mesmo enquanto o Bolsonaro é presidente, você vê que há uma resposta.

Mas eu acredito que em 2022 o povo vai dar uma resposta nas urnas e a gente vai ter uma mudança de panorama.

Você tem criticado o PT por não formar alianças. Vê possibilidade de uma Frente Ampla da oposição em 2022?

Tenho várias críticas ao passado do PT, mas este não é o momento. É o momento de pregar união. Espero muito que o PT tenha amadurecido nesse período, que os políticos do partido tenham entendido que o antipetismo é uma realidade. Não é algo que vai ser destruído em um ano e meio. E que é preciso a gente lutar com as armas que tem.

É a hora de uma aliança que inclua a direita não bolsonarista?

Muitos da esquerda se recusam a se unir a quem apoiou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, por exemplo...

Se a pergunta é: deve haver união com partidos ou representantes de direita? A resposta é sim. Deve, porque a gente está num Estado de exceção, um momento muito delicado da história do Brasil. Nós não estamos num ambiente racional e, para combater o mau-caratismo, a violência e a irracionalidade, precisamos nos unir a aliados mesmo que sejam pessoas das quais você discorda. Senão, não venceremos.

Você tem 41 milhões de seguidores e foi eleito uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2020 pela revista Time. O que pretende fazer com esse patrimônio de influência?

Projetos de educação digital. Investir em institutos que lutem por direitos humanos. Pretendo investir parte significativa dos meus ganhos, obtidos justamente com essa influência, para fazer a educação chegar até a casa de pessoas que não têm acesso a ela. Não tenho nenhuma necessidade vaidosa, de ego, de querer ser um representante, um líder.

Você se vê assumindo um papel político mais atuante?

Nenhuma hipótese. Somente via terceiro setor, institutos, ONGs, doações. Eu sou criador de conteúdo. No final de tudo, eu sou um palhaço do YouTube. Continuo sendo um cara para criar entretenimento, para fazer as famílias darem risada. Tenho as minhas opiniões políticas, sei que elas ganharam muita reverberação. Mas vou sempre manter a humildade de dizer quando não sou especialista no assunto.

Você continua sofrendo ameaças?

Ameaças são constantes. Algumas de gatos pingados, que são apenas gado mesmo. Todas são enviadas para o sistema de segurança que foi montado pra me proteger.

Temos extensa inteligência digital e física. Essas pessoas passam a ser mapeadas, para ver se representam risco. Ameaça grave mesmo foi uma, que resultou na retirada da minha mãe do país. Foi muito ruim.

Em algum momento, você pensou em sair do Brasil?

Penso em sair do Brasil pelo menos cinco vezes por semana. Mas é muito difícil. Tenho todos os meus amigos aqui, minha vida, minha família... O Brasil é o país que eu amo. Talvez um dia eu saia, mas eu sinto que não é o momento.

Acha que a imprensa profissional têm feito um bom trabalho em relação às redes sociais e à desinformação?

Não. Acho que evoluiu bastante nos últimos dois, três anos, mas ainda tem muito para melhorar. Tem problemas sérios e sistêmicos, principalmente em relação ao paywall [que restringe o acesso a não-assinantes].

Eu não sou daqueles que acham que o conteúdo precisa ser totalmente gratuito. A gente teve um período muito ruim, jornalisticamente falando, quando o digital invadiu. As assinaturas foram sumindo, e todo mundo só consumia informação gratuita. Aí os sites passaram a priorizar os cliques, e não a qualidade da informação. Mas a gente precisa repensar o paywall porque só se combate desinformação com informação, educação e Polícia Federal.

Se você restringe uma notícia fundamental atrás de um paywall, está elitizando o acesso a boa informação, e isso é um problema grave. Não é: “Folha, tire o paywall”. Mas é hora de debatê-lo. Como usar a inteligência artificial para permitir que as camadas que não têm condições de assinar a Folha ou outros veículos possam ter acesso à informação de qualidade?

Por que a direita, especialmente a extrema direita, usa a internet de forma tão mais eficiente do que a esquerda?

Porque a direita se alimenta dos nossos instintos mais primitivos. Por exemplo, o problema das drogas. O que é mais fácil para um pai ou mãe de família, que não tem tempo de ler livros sobre isso? O discurso que diz “tem que matar esses vagabundos” ou o que diz “precisamos compreender essas pessoas, tirá-las da sociedade para um ambiente socioeducativo, investir para que elas retornem corrigidas, e investir mais ainda dinheiro público em projetos sociais para as camadas mais pobres, para evitar que isso aconteça”? O que é mais fácil de entender e compartilhar é “mata esses vagabundos”.

Por isso essa direita chucra, burra e violenta tem tanto apoio: é muito fácil de entender [a mensagem]. Quem resumiu isso à perfeição foi o [deputado federal] Eduardo Bolsonaro (PSL), que tuitou que, para ser um conservador, não é preciso estudar. Ele estava errado, porque conservadores de fato não são esses reacionários bundões. Existem muitos conservadores extremamente inteligentes, com quem a gente consegue dialogar e discordar de uma maneira muito elevada.

Mas para ser um reacionário, um cara que quer o Estado ligado à Igreja, à moral cristã, não precisa estudar. Basta ler meia dúzia de livros ou assistir a meia dúzia de vídeos do Olavo de Carvalho. A solução dos problemas está ali, cristalina: violência, imposição e autoritarismo.

O pai e a mãe de família que precisam botar comida na mesa não têm tempo. Então, todos esses discursos fáceis, rasos, do “mata o bandido” ou “aborto é assassinato”, têm um grande apelo. As pessoas se engajam, e por isso a extrema direita surfa a onda do ambiente digital com muito mais facilidade.

A oposição tem o que melhorar em seu uso das redes?

Tem e muito. A esquerda ainda não aprendeu a se comunicar. Mas o ano de 2020 foi decisivo. Finalmente vi progressistas aprendendo a usar redes sociais. A campanha do Guilherme Boulos (PSOL) à Prefeitura de São Paulo foi espetacular.

Até então, a esquerda estava fechada para isso. Continuava com os mesmos discursos, a coisa elitista de exigir posicionamentos das pessoas, de exigir que as pessoas deixem de ser antipetistas. Essa exigência da esquerda era uma coisa arrogante que não funcionava, não funciona e nunca vai funcionar. Quanto maior é a sua exigência de mudança comportamental de uma pessoa na internet, mais resistente a pessoa ficará, e você fica mais distante. Precisa mudar de chave, sair do “olha aqui o que vocês fizeram” e passar para o comportamento que o Guilherme Boulos teve na campanha: educacional, explicativo e, mais importante de tudo, sucinto.

Como assim?

Um grande problema da esquerda é que ela é prolixa. Ela quer explicar os problemas com palavras demais, e a gente precisa compreender com quem a gente está se comunicando quando vai falar alguma coisa.

Você quer falar para um moleque de 15 anos como funciona o sistema do tráfico de drogas? Não adianta começar lá na crise do algodão nos Estados Unidos porque, no segundo parágrafo, o moleque já saiu do vídeo. O Boulos foi sucinto. E ele e a Manuela também conseguiram invadir o espaço dominado pela extrema direita. Foram a podcasts, jogos online, ambientes controlados por essa turma da extrema direita e disseram: Vamos conversar?

Existe um grande problema hoje na esquerda que se chama militância. A militância de esquerda não elege mais ninguém. É extremamente minada

Felipe Neto

Youtuber

A gente precisa oxigenar a esquerda com essa forma de fazer política. Tem muito caminho pela frente. E alguns temas ainda são tabus e precisam deixar de ser. Enquanto a esquerda não começar a falar de forma inteligente sobre ditaduras e regimes autoritários de esquerda, vai ser muito difícil ganhar uma eleição. As pessoas falam: você é defensor do [ditador venezuelano Nicolás] Maduro, você é defensor de Cuba.

A esquerda perde legitimidade para criticar autoritarismo no Brasil ao dizer que a Venezuela é uma democracia?

Existe um grande problema hoje na esquerda que se chama militância. A militância de esquerda não elege mais ninguém. É extremamente minada, se tornou cada vez mais extrema e com menos pessoas. Em contrapartida, é a que mais defende os políticos e ataca opositores. Então os políticos de esquerda se tornam reféns dessa militância. E essa militância exige que, sob nenhuma hipótese, se faça uma crítica a Maduro ou a Cuba.

Flagrado em vídeo jogando futebol depois de criticar quem descumpria regras de distanciamento social, você pediu desculpas publicamente, mas sofreu um movimento de cancelamento. O que você aprendeu com esse episódio?

O meu erro foi dar munição para essas pessoas com o erro de ter ido jogar a pelada. Eu me retratei e segui a vida. Só que isso gerou munição para essas pessoas que estão desesperadas para que minha reputação seja arruinada. Transformaram isso num circo. Não colou. Meu canal voltou hoje para o YouTube, números incríveis.

O que pensa hoje de cancelamentos?

No ano de 2020, refleti muito sobre posturas de cancelamento, sobre essa necessidade de pessoas nas redes sociais quererem arruinar a vida de outras em função de erros e equívocos que são corrigíveis. Essas pessoas se colocam nessa posição de juízes da moral e da ética.

Cancelamento é mais um erro que a esquerda comete. A cada cancelamento pela esquerda, é uma nova pessoa que você não pode aceitar amanhã. A esquerda precisa repensar isso, estamos num estado de exceção, precisamos fazer alianças, precisamos nos sentar e dialogar com quem a gente discorda, mas que são pessoas racionais. Esses cancelamentos afastam muito mais do que agregam. A gente precisa focar no grande problema: o flerte com o fascismo no controle do Brasil. Os outros problemas a gente pode combater amanhã.


RAIO X

Felipe Neto, 33

É youtuber, empresário, ator e comediante nascido no Rio de Janeiro. Felipe é criador de um dos canais brasileiros mais populares no YouTube, com de 41,2 milhões de inscritos, somando quase 12 bilhões de visualizações. Em seus vídeos, aborda temas variados de maneira crítica e cômica. Em 2020, integrou a lista de 100 pessoas mais influentes do mundo da revista Time.

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