Descrição de chapéu Causas do Ano Datafolha

'Violência sexual é agenda capturada pelo campo conservador', diz socióloga

Para a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o problema é uma epidemia no Brasil, onde impera a lei do silêncio

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Gabriela Caseff Giovanna Balogh
São Paulo

Violência sexual contra crianças "é uma epidemia no país" e está sob a mesa "quando deveria estar no almoço de domingo e na sala de aula", segundo Samira Bueno, 36, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A cada dia, 110 crianças e jovens com menos de 13 anos são estuprados no Brasil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado neste ano. O Datafolha também mostra que um terço da população foi vítima de situações de agressão ou violência sexual. Só 11% denunciam.

O problema evidenciado nas pesquisas passa longe de debates entre presidenciáveis, de planos de governo e discussões familiares. "Criança não dá voto", afirma Samira.

Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública - Danilo Verpa/Folhapress

À esquerda e à direita, discutir violência sexual contra menores não traz votos e o tema tem sido garfado pelo campo conservador e servido como tabu, diz a socióloga.

"Somos uma sociedade conservadora e o voto da mulher evangélica está em disputa. O presidente Bolsonaro sabe que precisa falar com elas e os projetos aprovados ou em tramitação em seu governo são conservadores."

Para tirar do armário essa problemática, Samira Bueno defende que adultos precisam romper o silêncio sobre esse tipo de violência, mote do movimento #AgoraVcSabe, puxado pelo Instituto Liberta. "Não dá mais para fingir que não acontece."

Enfrentamento à esquerda e à direita

No debate entre candidatos à Presidência da República, a violência contra mulher ganhou protagonismo. Isso indica que o problema será enfrentado? O debate foi um vexame. A discussão sobre mulheres foi feita entre os homens. A violência baseada em gênero é um tema marginalizado no debate público e nas campanhas. E não é de hoje.

Na eleição de 2018 foi a mesma coisa. Poucas propostas para mulheres e crianças e mais do mesmo. Criar delegacia da mulher, capacitar profissionais, mas não avançam em grandes políticas. Criança não dá voto.

Somos uma sociedade conservadora e o voto da mulher evangélica está em disputa. Bolsonaro sabe que precisa falar com elas e os projetos aprovados ou em tramitação em seu governo são conservadores. Não são agendas que vão avançar no enfrentamento do problema.

Por que essa agenda não deve avançar? Quando Bolsonaro coloca Damares Alves no ministério, deixamos de lado os direitos das mulheres e das crianças para pensar nos direitos da família. Ou seja, você tira a criança e a mulher como sujeitos de direitos e coloca a família como ator a ser preservado. E ignora que famílias, muitas vezes, são agentes da violência, uma vez que 70% dos abusos contra criança e mulheres acontecem dentro de casa.

Outro problema são os casos de gravidez decorrentes de estupro. As ações do Judiciário e do Ministério Público têm caminhado no sentido de impedir que a criança tenha acesso ao aborto legal e de perseguir médicos.

Então parece que há um custo alto para que a sociedade e os políticos assumam este enfrentamento da violência sexual. É uma agenda capturada pelo campo conservador.

Parece que há um custo alto para que a sociedade e os políticos assumam o enfrentamento da violência sexual. É uma agenda capturada pelo campo conservador

Samira Bueno

sobre o combate à violência sexual

Como o campo progressista enfrenta a violência contra mulheres e crianças? Se Lula for eleito, não me parece que teremos uma janela de oportunidade. Precisamos de uma grande política pública direcionada para enfrentar a violência. O tema nem entrou nos planos dos candidatos.

Apesar dos números de casos serem chocantes, o assunto não tem sido tratado como prioridade até porque as principais lideranças políticas são homens.

Como proteger mulheres e crianças

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 diz que o Estado brasileiro não consegue proteger suas crianças e adolescentes contra a violência sexual. O que tivemos nesses últimos quatro anos foi a redução de gastos para combater violência sexual, chegamos ao menor patamar da história.

Dados do Think Olga mostram que, em 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos gastou pouco mais de 30% no enfrentamento à violência contra mulheres. Sem a liderança da União, teremos políticas públicas isoladas.

Publicamos o Anuário há 16 anos porque o Governo Federal não sistematiza as informações sobre violência no Brasil. Pedimos registros de delegacias e começamos a monitorar estupros.

Em 2019, a preocupação com o estupro de vulnerável entrou definitivamente no radar. Foi surpresa ver que, nos mais de 60 mil estupros registrados por ano no Brasil, a maior parte das vítimas são crianças e adolescentes.

Os dados mostram que são mais de 4 meninas e meninos menores de 13 anos estuprados por hora em nosso país.

E a regra é que abusadores não são punidos no Brasil? Não são E, em geral, o drama de lidar com a situação fica com as mães. E sabe o que elas fazem? Se mudam, levam a criança para outro lugar.

Na maioria dos casos, é a palavra da vítima contra a do agressor, especialmente em caso de criança, porque a denúncia não é imediata. Se palavra de mulher adulta contra agressor vale pouco nesse país, imagina a palavra de uma criança.

E tem o problema da produção de provas. Às vezes não houve penetração, foi sexo oral, o agressor estava com preservativo. Então não há vestígios. No limite, podemos dizer que é fácil abusar de crianças e sair impune.

Se não tivermos ações pensando no agressor, que são invariavelmente homens (99,9%), é enxugar gelo. O abuso não é necessariamente caso de pedofilia pois a maior parte dos abusadores de crianças não são pedófilos.

Não é patológico, é uma questão cultural. O homem entende que tem uma posição de poder e que isso lhe dá autonomia para praticar atos sexuais com quem ele quiser.

Se palavra de mulher adulta contra agressor vale pouco nesse país, imagina a palavra de uma criança

Samira Bueno

sobre a revitimização

O que pode ser feito para proteger mulheres e crianças? É importante dizer que tivemos uma mudança radical em uma década, com diversas leis que ajudaram a endereçar o problema. Mas é tudo recente: a legislação brasileira só inclui uma concepção ampla do que é violência sexual em 2009.

Adolescentes e jovens estão mais atentos a e são menos tolerantes à violência. Enxergo uma mudança geracional a partir de campanhas como #MeuPrimeiroAbuso. A prevenção é fundamental. Garantir que a criança compreenda que está sendo abusada.

Quem vai bancar a briga da educação sexual nas escolas? Se a gente sabe que o abuso compromete o desenvolvimento emocional, precisamos lidar com isso para além da emergência. Estamos despreparados porque fingimos que é só uma emergência, como fazer um boletim de ocorrência para acionar seguro.

O abuso é uma cicatriz que fica para a vida. Precisamos pensar programa nacional de acompanhamento dos sobreviventes de violência sexual.

Dados estão sobre a mesa

Um a cada três brasileiros admite ter sofrido agressão ou violência sexual antes dos 18 anos, segundo levantamento recente do Datafolha. Como avalia esse dado? O Brasil vive uma epidemia de violência sexual. Os dados chocam, mas era o resultado esperado.

Se um terço da população foi vítima, então não é exceção. Não são casos espetaculares, eventos fora da curva ou "famílias ruins".

O Datafolha mostra que precisamos reconhecer que a violência sexual contra menores faz parte do cotidiano da sociedade. E infelizmente nosso moralismo não permite que se faça o debate necessário.

O que as pesquisas mostram é a ponta do iceberg. A grande maioria dos casos está abaixo da superfície, subnotificada, sendo praticada dentro de casa por alguém que tem relação de poder em cima de uma criança, como um pai, padrasto ou avô.

O pior é que os casos que normalmente são denunciados são os mais graves, quando a vítima já passou por vários e vários abusos. E como o tema é tabu em nosso país, a chance de ter pessoas que não se reconhecem como vítimas de agressão ou violência sexual é enorme.

O que polícias podem fazer com esses dados em mãos? As polícias brasileiras são portas de entrada e não estão preparadas para atender crianças vítimas de violência sexual. No geral, criança e mãe são revitimizadas.

Mas há experiências interessantes isoladas. Como na Polícia Civil de São Paulo, que tem formação e escuta protegida; a tecnocientífica de Fortaleza, que tem protocolo de exame de corpo de delito; e a do Piauí, que criou plantão de gênero nas delegacias para atender mulheres, crianças, travestis e transexuais em toda e qualquer situação de violência doméstica e familiar.

Há uma enorme agenda de trabalho para pensar no acolhimento, na escuta, produção de provas, integração com Ministério Público e Judiciário para garantir que o inquérito proteja a criança.

Um protocolo nacional para acolhimento em delegacias seria fundamental. Cada estado faz o seu e faz mal.

Como o Brasil está em relação ao entendimento desse fenômeno? Qual é o papel das universidades? Elas poderiam produzir pesquisas, fomentar estudos e dar protagonismo ao Brasil. Estamos muito atrás nesse sentido. Faculdades de direito deveriam priorizar o debate sobre responsabilização. Escolas de psicologia poderiam preparar delegados para o acolhimento.

Nós nos apropriamos da agenda da violência doméstica, mas pouco da violência sexual. Do ponto de vista da pesquisa e da responsabilidade social, tem muito a ser feito.

#AgoraVcSabe

Qual a importância de ações como as propostas pelo #AgoraVcSabe, movimento que busca romper o silêncio de vítimas de violência sexual? Ajuda a tirar esse assunto do armário. Não dá mais para fingir que não acontece. Os números das pesquisas ajudam, mas campanhas de convencimento são essenciais para deixar as pessoas alertas.

Ouvir a Angélica [apresentadora e embaixadora do #AgoraVcSabe] contar que sofreu violência sexual desmistifica o problema. A pessoa se reconhece como vítima, pois não ‘pega mal’ admitir que foi vítima. Não é ‘mimimi’.

Lidamos com traumas de diferentes formas. Quando falamos, tiramos do lugar do tabu. Como normalmente os abusos envolvem pessoas da família, são tratados como segredo. As pessoas não falam e colocam o problema embaixo da mesa quando deveria estar no almoço de domingo.

O debate sobre violência sexual contra menores tem que estar na novela da Globo, não só nas páginas policiais.

Raio-X

Samira Bueno, 36
Socióloga e diretora-executiva do Fórum de Segurança Pública, onde atua desde 2008. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo pela FGV. Foi apontada pelo Escritório Regional das Nações Unidas para a Paz como uma das 60 mulheres da América Latina que se destacaram na luta pelo desarmamento.

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