'Acham que indígenas precisam ficar isolados na floresta', diz influencer tupinambá

Ribeirinho cria podcast sobre cultura amazônica e é escolhido para integrar rede de líderes da Fundação Lemann, depois de palestrar em Davos

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São Paulo

A palavra "pavulagem", expressão típica do Amazonas, faz referência ao ato de se exibir. Pabular (ou pavular) significa contar grandezas, vangloriar-se, segundo o Dicionário Aurélio. Apesar da conotação negativa, Maickson Serrão, 31, não poderia ter escolhido termo mais acertado para nomear seu podcast.

No programa do jornalista ribeirinho, ele e contadores de histórias narram lendas da tradição oral amazônica, em um esforço para resgatar —e exibir com orgulho— a cultura da região.

O podcast de sucesso é apenas parte da história de Serrão, que nasceu e cresceu na Vila de Boim, comunidade ribeirinha localizada em uma reserva extrativista no Pará.

De origem tupinambá, o contador de histórias, como ele próprio se intitula, já criou uma startup para vender passagens de transporte hidroviário, atuou na ONG Saúde e Alegria e foi escolhido para falar no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, em 2023.

Além disso, recentemente passou a integrar a rede de líderes da Fundação Lemann, uma das principais ONGs do Brasil no setor da educação.

Homem indígena sentado em frente a um microfone
Maickson Serrão, jornalista e podcaster paraense - Arquivo pessoal

A seguir, Serrão conta à Folha como saiu de uma pequena comunidade no Pará para se tornar liderança no cenário internacional.

"Nasci em uma comunidade chamada Vila de Boim, que fica dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Pará. Os moradores da região vivem principalmente da pesca, caça e agricultura familiar, mas tudo em pequena escala, apenas para sobreviver. Até hoje a energia elétrica não chegou a todas as moradias da comunidade.

Na minha infância, não tinha televisão em casa. Nosso maior entretenimento era ouvir histórias, como as dos seres encantados da floresta amazônica, que uma tia contava. Esses momentos eram mágicos, eu viajava para um mundo que desconhecia.

Os encantados são seres que habitam a floresta, o céu e os rios. Não tem como explicar, mas a gente acredita, sente a presença deles e, claro, tem medo. Boto-cor-de-rosa e Curupira são exemplos.

Em 2004, minha vida mudou. No Réveillon daquele ano, a casa onde vivíamos pegou fogo. Felizmente, os pais de meu padrasto nos deram uma nova casa no centro. Nessa época, fiz amizades e passei a integrar um grupo de jovens apoiado pela ONG Saúde e Alegria.

Com o apoio da ONG, eu e outros jovens produzimos um jornal. Tentávamos seguir o modelo de um jornal grande, mas do nosso jeito, escrevendo também sobre cultura local. As edições eram enviadas de barco para a sede da ONG, que imprimia cópias para serem distribuídas na comunidade.

Gostei desse protagonismo juvenil e, mais tarde, passei a trabalhar em uma rádio local. A pequena emissora tinha dois alto-falantes, colocados no ponto mais alto da comunidade, para que todos pudessem ouvir a programação —o pessoal adorava.

Tempos depois, a comunidade também ganhou um telecentro de acesso à internet por satélite, criado pelo governo federal. Era o único espaço na região com energia 24 horas por dia.

Fui me destacando na ONG, aproveitei as conexões, e me convidaram para participar de eventos pelo Brasil. Mais recentemente, entrei para a rede de líderes da Fundação Lemann, que reúne enorme capital intelectual. Ocupar espaços como esse me permite dialogar com outras pessoas que também estão em busca de um país melhor.

Aos 17 anos, me mudei para Santarém, cidade que fica a dez horas de barco da comunidade, para cursar licenciatura em educação física. Fiz isso porque a educação é precária em Boim: só vai até o ensino médio.

Muitos moradores da região ainda acreditam que concluir o ensino médio significa terminar os estudos. Até hoje existe uma cultura de se casar e ter filhos cedo, ainda na adolescência.

Eu sempre fui um estudante dedicado. Minha mãe dizia a mim e aos meus três irmãos que a educação é a única forma de escapar da pobreza e ter uma vida mais digna. Ela própria só estudou até o ensino fundamental e teve o primeiro filho aos 16 anos.

Em Santarém, me formei em educação física, mas não gostei do curso. Por isso, quando já morava em Manaus, onde passei em um concurso para ser professor da rede pública, decidi estudar jornalismo.

Dando aulas como professor, notava que as novas gerações não conheciam as histórias dos seres encantados. Apesar de Manaus estar tão perto de comunidades ribeirinhas e aldeias indígenas, esse conhecimento não estava sendo transmitido.

Comecei a me questionar: o que fazer para que o conhecimento que está só na cabeça das pessoas, principalmente dos mais velhos, não desapareça?

Ao perceber que as histórias orais dos povos ribeirinhos e indígenas estavam se perdendo, senti que precisava fazer alguma coisa enquanto indígena, jornalista e ouvinte dessas histórias.

Maickson Serrão

Criador do podcast "Pavulagem"

Daí surgiu a ideia do podcast Pavulagem. Fui atrás de personagens locais que pudessem participar como contadores de histórias. Em alguns casos, viajei 30 horas de barco para chegar até essas pessoas.

Os contadores fazem um trabalho de doação. Eles abrem as portas de suas casas para compartilhar o saber tradicional, as memórias, pois sabem que, se as histórias não forem transmitidas, elas se perderão.

Sempre busco mostrar o resultado final para eles. Nem todos têm acesso a uma internet boa para baixar os episódios e alguns nem sabem o que é Spotify. Então eu envio um arquivo que possa ser ouvido de forma offline no celular ou mesmo ser veiculado na rádio comunitária.

Sinto que contar histórias tem sido uma forma de representar meus semelhantes. Em 2023, também tive a oportunidade de representar jovens iguais a mim no Fórum Econômico Mundial, em Davos, onde fui convidado a falar.

Confesso que tive receio. Além do frio, enfrentei a barreira do idioma. Ainda falo pouco inglês. Apesar das dificuldades, sabia que precisava fazer isso, não só por mim, mas pela comunidade.

As pessoas do lugar onde nasci têm uma admiração forte pelos espaços que fui conquistando. Quando estou em locais como Davos, penso nelas. Para mim, não adianta estar ali, crescer, se os meus não puderem crescer junto comigo.

Nós, povos indígenas e ribeirinhos, temos uma cultura de pensar sempre no coletivo.

Maickson Serrão

Criador do podcast "Pavulagem"

Palestrei com a ajuda de um intérprete e pude me conectar com a comunidade brasileira que estava no evento. Por exemplo, conversei com o governador do estado do Pará, o presidente da Vale e ministros. Dificilmente teria acesso a essas pessoas em território brasileiro. Em Davos, percebem que você é importante por estar ali e te ouvem.

Quis passar a mensagem de que nós, indígenas e ribeirinhos, podemos ocupar qualquer espaço. Pensei no quanto a gente poderia ensinar àquelas lideranças globais sobre preservação da natureza.

Muitos ainda acham que indígenas devem ficar à parte da globalização, isolados na floresta. Mas o mundo pode aprender com a gente. Só que, para isso, é preciso dialogar, inclusive com quem pensa diferente."

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