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Assim como Hélio Schwartsman, que já escreveu sobre o assunto nesta
seção, sou do tempo em que se falava mal da "democracia burguesa".
Era estranho: lutava-se contra o regime autoritário, mas não se queria
exatamente um sistema que se sustentasse apenas em eleições, liberdade
partidária, Parlamento etc. Era pouco; e essas instituições, como
se sabe, não garantiram a vitória do proletariado; o poder continuava
na mão das classes dominantes.
O desdém pela "democracia burguesa" saiu de moda, felizmente. O termo
ajudava aos totalitários de esquerda, porque podiam elogiar sistemas
ditatoriais chamando-os de "democracias populares" ou coisa que o
valha.
Mas é claro que a democracia que existe no Brasil, nos Estados Unidos
ou na Inglaterra está longe de ser satisfatória. Surpreendo-me ao
juntar na mesma frase esses três países. No Brasil temos desigualdades
sociais enormes, e só isso já aponta para assimetrias na representação
política, na organização dos mais fracos, no acesso à informação.
Pois bem: mesmo que superássemos esses "probleminhas", a plena democracia
não seria muito fácil de atingir. E por isso justifico o fato de ter
juntado o Brasil a países mais desenvolvidos e menos desiguais socialmente.
É que nos dois escândalos políticos mais recentes, o da espionagem
e o caixa 2 da campanha de FHC, estamos às voltas com problemas típicos
das democracias desenvolvidas. Claro que aqui as regras do financiamento
às campanhas eleitorais são bem mais frouxas que em outros países.
Ninguém imagina, contudo, que qualquer campanha num país rico funcione
sem a intervenção, discutível, de forças econômicas poderosas.
Nos dois casos, é possível ver um processo interessante em curso.
Quando se começa a investigar assuntos como espionagem e financiamento
de campanhas, trata-se de "democratizar" uma área da política, um
terreno dos negócios de Estado que até hoje vinha resistindo a qualquer
questionamento público direto.
É como se a democracia fosse sendo construída por etapas. É conhecida
a periodização do pensador político T. H. Marshall, segundo a qual
o século 18 foi o período da luta pelos direitos individuais, o século
19 o da ampliação dos direitos políticos (voto universal, por exemplo)
e o século 20 o da conquista dos direitos sociais.
A tentativa de desmontar, ou de pelo menos controlar os núcleos secretos
do Estado talvez remeta a uma outra questão, que hesito entre chamar
de "direito à informação" e "direito de governar". "Direito à informação"
não é muita novidade, e desde o século 18 a imprensa é seu veículo.
"Direito de governar" é um pouco exagerado, mas combina com o século
21.
Talvez seja isso mesmo: o imperativo da transparência sobre os aparatos
de segurança nacional, sobre financiamentos de campanha, e sobre as
consequências desses financiamentos nos atos de governo, atinge o
âmbito mais importante, o "núcleo duro" do poder --onde segredo de
Estado, ilegalidade e enriquecimento privado se confundem.
Quando se começa a tratar disso, é uma nova etapa na democracia que
entra na ordem do dia. Talvez seja o último bastião --para usar um
termo de outras épocas-- do Estado nacional, agora que câmbio, moeda,
política econômica etc. são cada vez menos dependentes da vontade
política de um país.
Claro que no Brasil --mas também em outros países-- as etapas anteriores
do processo democrático (direitos individuais, por exemplo) não se
completaram satisfatoriamente. Mas, para quem anda desanimado com
o fim das utopias etc., não deixa de ser relevante observar que o
"fim da História" não está nem um pouco próximo.
Leia colunas anteriores
10/11/2000 - O
que é censura?
03/11/2000 - Quem morreu?
27/10/2000 - Fascismo
por Procuração
20/10/2000
- Ôôô Dona Marta!
13/10/2000 - Descontrole emocional
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